10,99 €
Uma história apaixonante que mergulha no amor incondicional e na luta para sobreviver a um destino já traçado. Sob a chuva miudinha de Sopuerta, uma fria povoação do norte de Espanha, um grupo de paroquianos dirige-se à igreja para ouvir a missa de domingo. Olham de soslaio para Sole e para o seu filho Joxean, um jovem encarcerado na mente de uma criança de cinco anos, sobretudo Miren, sua vizinha e inimiga íntima. Todos guardam segredos e sentem culpas. Em especial, um grupo de mulheres que sussurram em silêncio o medo, o desamor e a solidão. Um acontecimento terrível, que todas pressentiam, irá despertar o seu desejo de vingança. Até quando estarão dispostas a calar-se?
Sie lesen das E-Book in den Legimi-Apps auf:
Seitenzahl: 349
Veröffentlichungsjahr: 2025
Editado pela HarperCollins Ibérica, S. A.
Avenida de Burgos, 8B
28036 Madrid
www.harpercollinsportugal.com
Sozinhas no meio do silêncio
Título original: Solas en el silencio
© 2025, Silvia Intxaurrondo Alcaine
© 2025, para esta edição da HarperCollins Ibérica, S. A.
© Tradutor: Jorge Manuel Fernandes Colaço
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Sem limitar os direitos exclusivos do autor, editor e colaboradores desta publicação, fica expressamente proibida qualquer utilização não autorizada desta publicação para o treino de tecnologias de inteligência artificial (IA). A HarperCollins Ibérica, S.A. pode exercer os seus direitos ao abrigo do Artigo 4.º (3) da Diretiva (UE) 2019/790 relativa aos direitos de autor no mercado único digital e proíbe expressamente a utilização desta publicação para atividades de mineração de texto e de dados.
Design da capa: CalderónSTUDIO®
Imagem da capa: Shutterstock
ISBN: 9788410644755
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Portada
Créditos
Dedicação
Prefacio
Parte I. A Cadela
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Parte 2. A mortalha
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Terceira parte. A Coruja
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Se gostou deste livro…
Para Farouk
Em Sopuerta, um manto de silêncio cúmplice permite que os moradores sobrevivam ao inferno. Cada casa esconde a sua desgraça e olha de viés para a desgraça alheia, sem articular uma única palavra. É um pacto antigo que se transmite pelo exemplo, de geração em geração.
Quem olhar para um inferno que não é o seu, arderá entre as suas chamas.
Quem se atrever a procurar justiça, pagará com a vida.
Quem ler esta história terá de se comportar apenas como mais um habitante da vila.
Calai-vos. Que nada mude.
No número três da rua Benito Luis Hurtado a felicidade e o infortúnio viviam frente a frente. Subindo sete degraus de granito desde a entrada do prédio, chegava-se a um patamar húmido ladeado por duas portas. Do lado esquerdo, a casa de Miren Huarte. Do lado direito, a casa de María Soledad Urralburu, a mãe do tolo da aldeia.
Como era domingo, Sole acordou às oito e tomou um banho demorado. Encheu a tina de água a ferver e meteu-se dentro dela com a avidez de quem tem a humidade entranhada até à medula. Estreou o sabonete Heno de Pravia, ensaboando-se e esfregando o seu corpo grande e ossudo até a sujidade ficar a flutuar na água morna.
No momento em que ia pôr um pé fora da banheira, ouviu os gritinhos alegres do filho no corredor.
— Leite friii, leite friiii…! — reclamava o rapaz enquanto dançava.
— Vou já, maitia, querido! — respondeu ela.
Sole secou-se o melhor que pôde, vestiu o roupão e saiu do banho. Joxean esperava-a a meio do corredor, com o seu sorriso tolo, como um pateta. Ela segurou-lhe a cabeça entre as suas mãos e depositou-lhe no rosto mil beijos suaves, minúsculos como borboletas.
— Esque… esqueces… te… te… do leite fri… frit… frito, ama! — recriminou-a o rapaz, com ar tristonho.
Joxean tinha vinte e três anos, mas estava encerrado na mente de uma criança de cinco. Era um grandalhão alegre, vestido com roupa de velho: calças de tergal cinzento e camisa de flanela aos quadrados. Sole pôs-lhe o braço por cima dos ombros e levou-o até à cozinha. Deduzia que o seu filho tinha fome.
Enquanto preparava um café na cafeteira, Joxean esperava sentado, impaciente. Pegou num pedaço de pão e repartiu-o por duas tigelas.
— Pão para o bebé, pão para a ama — disse ele, iniciando a lengalenga. — Um para mim, um para ti…
O rapaz continuou a contar em voz alta até desfazer o pão. Quando o café ferveu e repousou alguns minutos, Sole deitou-o nas tigelas. Enquanto lavava o púcaro e o passador, Joxean meteu a colher de sopa até ao fundo do açucareiro e retirou-a desajeitadamente a abarrotar de açúcar. Os nervos atraiçoaram-no e entornou praticamente metade sobre a mesa de fórmica branca. Quando Sole virou a cabeça, o rapaz já tinha misturado o pão, o café e o açúcar, e tentava esconder os grãos que tinham caído com o guardanapo de tecido branco.
Mãe e filho tomaram o pequeno-almoço com voracidade porque não costumavam jantar grande coisa, tirando sopas de alho ou algum ovo estrelado. Acordavam com as tripas a roncar e assim passavam uma boa parte do dia. Sole tentava distrair a fome com cafés aguados e pão seco, mas ao rapaz isso não bastava. Era um rapagão ossudo e curvado, sem nenhuma gordura e com os ossos cobertos por uma pele fina. Muitas noites escondia a cabeça entre as mãos e soluçava. Estava morto de fome.
* * *
As nuvens fecharam-se sobre o bairro de Mercadillo quando Sole e Joxean desceram a rua Lehendakari Aguirre. A estrada de dois sentidos começava a ser transitada pelos paroquianos abastados que a percorriam aos domingos. Mãe e filho abotoaram os casacos de pano grosso e puído e apressaram o passo a caminho da igreja.
— Despacha-te, não quero voltar a chegar tarde, filho — sussurrou-lhe ao ouvido.
Faltavam quinze minutos para o meio-dia quando os habitantes da terra começaram a dirigir-se em massa para a igreja paroquial de Santa Maria. Os sinos acabavam de repicar pela segunda vez a chamada para a missa das doze. Sole e Joxean refugiaram-se no pórtico da igreja no preciso momento em que começou a cair uma chuva miudinha, uma chuva densa do tamanho de partículas de pó. Ambos entraram no templo de braço dado. Sole fez uma careta ao sentir a humidade do interior. Era uma igreja escura, lúgubre, mais pensada para funerais do que para casamentos.
— Estou bo… bo… bonito, ama? — perguntou o rapaz, com a boca muito aberta.
Sorria com os seus dentes grandes e desiguais, amarelos até às gengivas. Tinha encharcado o cabelo de colónia barata e fizera um penteado de risco ao meio. Sole tirou o lenço, limpou-lhe um fio de baba e dirigiram-se para o altar.
— Nunca vi nenhum menino mais bonito do que o meu Joxean — mentiu ela.
Os paroquianos começaram a murmurar quando mãe e filho assomaram à porta da igreja. «Que par de mortos de fome», sussurrava uma. «O rapaz mete medo, cada dia parece mais apalermado», comentava outra.
Joxean largou o braço da mãe, pegou no livro de cânticos e, pisando ruidosamente o genuflexório de madeira, sentou-se com um sorriso. Queria cantar.
— Que coragem! — indignou-se Miren Huarte. — É preciso falar com o don Eusebio. Aquela não pode continuar a trazer o atrasado à casa de Deus.
Sole ouvia tudo e fazia como se não ouvisse nada. Abriu a mala e deu ao rapaz uma folha amarfanhada de papel branco, como todos os domingos.
— Faz um aviãozinho, maitia, vamos pô-lo a voar quando sairmos.
Ouviu-se os sinos repicar pela terceira vez, para recordar que a eucaristia estava prestes a começar. Fez-se silêncio entre os fiéis. Ao ouvir o frufru da sotaina de don Eusebio a aproximar-se, vindo da sacristia, os paroquianos puseram-se de pé e entoaram o Pescador de homens.
Joxean levantou-se e balançou o corpo para a frente e para trás com movimentos bruscos. O seu canto, trapalhão e fora de tom, sobressaía por cima das vozes dos outros.
— Tu que vieste a miiiiiim…! — cantava, com a voz no máximo. — Nem a pobre nem a ricos…! Senhooooor…!
Don Eusebio entrou na igreja com as mãos contra o peito, em posição de oração, e olhando em frente, um palmo acima dos paroquianos. Todos os devotos se sentaram, exceto Joxean, que lhe sorria e o saudava agitando discretamente a mão direita. Conhecia o segredo do padre.
María Consuelo Guezuraga, a viúva do taberneiro, levantou os olhos do balcão e, através da vidraça, comprovou que a missa tinha terminado. Deixou as lavagens, secou as mãos com um pano e apressou-se a ir para a cozinha. Lá encontrou a sogra, a suar profusamente entre tachos e panelas.
— Prepara as lulas, que eles já estão a sair, amama! — ordenou com urgência à avó.
Rosarito não chegava ao metro e meio de altura, e era praticamente tão alta quanto larga. Subiu para um banquinho de madeira e espreitou para a caçarola de aço inoxidável cheia de óleo até cima. Rodou o botão do fogão para a direita, deu uma olhadela ao bico-de-gás para confirmar que a chama estava no máximo e esperou até ouvir o óleo a borbulhar.
— Não começo a fritar até que os paroquianos cheguem, querida! — advertiu ela. — É preferível que soprem as lulas para arrefecerem do que nos martelem a cabeça com a cantilena de que estão frias — resmungou.
A sogra de Consu tinha um olhar a meio caminho entre a surpresa e o horror. Os globos oculares saíam-lhe das pálpebras e terminavam em duas pupilas verdes, camaleónicas, que raramente lhe fixavam o olhar no mesmo ponto.
Rosarito tinha a pele do rosto lisa devido à gordura, coberta por uma rosácea permanente sobre o nariz e as bochechas. Era uma mulher intratável. Sentia-se a salvo na intimidade da sua cozinha, levando a vida para a frente entre goles de bagaço.
— Já aí vêm? — perguntou ela.
— Ainda falta — respondeu Consu, ao mesmo tempo que passava um pano pelo balcão.
A amama fazia bailar as suas redondezas entre os fogões. Lavava os tentáculos das lulas na pia, escorria-os e dispunha-os em fila sobre a tábua de madeira. Cortava-os em pedaços com a precisão de um cirurgião e depois passava-os pela tigela da farinha.
A maré de fiéis abandonou lentamente o pórtico da igreja e dirigiu-se para a taberna, abrindo os guarda-chuvas intermitentemente. Paf, paf, paf.
— Rosarito, já vêm aí, não deixes passar o tempo! — avisou ela, com a sua voz aguda.
Dois minutos depois, com a taberneira de costas para a entrada, a dobradiça gemeu, a porta de madeira abriu-se como um leque e a humidade da chuva miudinha, mas intensa, inundou a taberna. Quando Consuelo virou a cabeça para dar os bons-dias, sentiu gelar-se-lhe a alma. O diabo voltara a entrar.
O alcaide[1] de Sopuerta avançou a passo firme para o interior da taberna Kolitza. Em apenas duas passadas, ficou de barriga encostada ao balcão, esbarrando no olhar aterrorizado da taberneira. Estava à beira das lágrimas. Com os lábios a tremer. Não conseguia dizer palavra.
— Egun on, Consuelo! — sorriu ele, com arrogância. — Muita alegria mostras tu para esconder tanta dívida.
Ángel Larruskain estendeu o braço e a sua mão agarrou o peito generoso de Consu. Ela emudeceu. O alcaide apertou com mais força. Então, a mulher mais combativa de Sopuerta cruzou as pernas até os joelhos lhe doerem e urinou por elas abaixo.
Alheios aos excessos do alcaide, que já se tinha instalado na mesa do fundo, os paroquianos foram entrando aos poucos na taberna. Limpavam os sapatos no tapete exterior e sacudiam os guarda-chuvas sem grande cuidado. Formou-se tal charco à entrada que Consu aproveitou para passar a esfregona dos dois lados do balcão, espalhar serradura e esconder a sua urina.
Ángel ergueu-se e recebeu don Eusebio, o prior, e Iñaki Loizaga, o médico da povoação, com um abraço e várias palmadas nas costas. Como todos os domingos ao meio-dia, convidou-os a acompanharem-no durante o aperitivo. Na cozinha, Rosarito alisava o avental e o cabelo antes de ir atender essa mesa.
— Egun on, meus senhores. Que grande aguaceiro! — saudou ela, enquanto puxava o brilho à madeira. — Aqui têm as lulinhas e já lhes trago os txikitos.
Consu, que seguia a conversa à distância, já tinha deixado sobre o balcão três copos achatados e largos de vinho tinto. Rosarito aproximou-se, arrastando as suas peles pendentes nos braços e nas coxas.
— Maitia, o vinho é para o alcaide e os seus amigos. Sê mais generosa.
A taberneira voltou a encher os copos até meio e empurrou-os para os aproximar de Rosarito, que os levou a cantarolar. Aproveitando o facto de a sua sogra ter saído da cozinha, refugiou-se entre os fogões e lavou a cara. De imediato, uma voz feminina reclamou a sua presença.
— Consu, querida! Onde estás? — Basilia Mendieta, a esposa do alcaide, irrompeu no local fazendo valer o seu poder de consorte.
Quando mais vaidade o cliente mostrava, mais segredos do passado queria enterrar. Basilia era um exemplo claro.
* * *
De pai desconhecido e mãe empregada numa casa nobre de Balmaseda, Basilia chegou a Sopuerta com dez anos, sozinha e de barriga vazia. A mãe teve de se desfazer dela por ordem da senhora da casa, que a via como mais uma boca para alimentar.
— Vá saber se alguma família dos arredores ou alguma paróquia precisa de uma menina e leve-a — ordenou-lhe ela —, que comece a servir e que deixe de viver de sopa à borla.
O padre Ramón, mentor de don Eusebio, encontrou-a descalça à porta da igreja de Mercadillo e teve piedade dela. Pediu-lhe para limpar a igreja a troco de um salário que, a seu ver, era justo: sobras do cozido, alguma côdea e um canto onde se abrigar. Basilia tinha indicação para não se relacionar com os habitantes da vila. Para ser uma sombra que não causasse incómodo. Se se cruzasse com algum, baixava a cabeça, cumprimentava em voz baixa e seguia o seu caminho. Estava perto da puberdade e o prior não queria que os rapazes da aldeia reparassem nela.
Sempre que ficava sozinha, a jovem Basilia dava voltas à igreja, limpando e arrumando os centros de flores, retocando o vestido da virgem e ajustando a coroa de espinhos do Cristo. Quando alguma alma entrava no templo, cumpria religiosamente o pacto com don Ramón e escondia-se no coro alto. De lá, presenciou a eucaristia todos os domingos ao longo da sua adolescência.
Desde as alturas, Basilia nunca intuiu a vida de violência e indiferença que a esperava lá em baixo. Uma manhã de inverno, o padre Ramón obrigou-a a descer do coro depois de uma missa em que a jovem não parou de tossir. A rapariga tinha vinte anos, fervia em febre e lutava contra uma bronquite, que se agravava.
Muitos aldeões, quando a viram descer pela escada, pensaram que era um fantasma. Tinha a pele marmoreada e vestia as roupas das falecidas que as famílias ofereciam à igreja. Só o casal Larruskain sorriu e se entreolhou, surpreendido. A menina devia ser a única jovem virgem que o filho não conspurcara. Provavelmente, ainda não descobrira que Ángel era um monstro.
* * *
A esposa do alcaide, envolta no seu casaco de peles, sentara-se a duas mesas de distância da do seu marido. Atravessou a taberna, batendo ruidosamente os seus saltos de agulha, movendo-se ao ritmo das suas pernas ossudas enfiadas em meias pretas. Tinha passado tanta fome em criança que o seu corpo era incapaz de engordar. O apetite provocava-lhe ansiedade e, quando avistou Consu a sair da cozinha, insistiu aos gritos:
— Consu, egun on! É preciso acordar, querida, mesmo que não se vá à missa! — recriminou-a.
A taberneira faltava à eucaristia, explicando que uma viúva como ela, com quatro filhos e a sogra a seu cargo, não podia brincar com o pão da família no dia de mais movimento. Mentia. Aos domingos dava folga aos rapazes que costumavam ajudá-la na taberna, tomava conta do sítio sozinha e assim tinha uma desculpa para não se aproximar da igreja. Há muito que deixara de acreditar em Deus. Há muito que não se queria cruzar com alguns habitantes da vila na missa.
Consu apressou-se a aproximar-se da mesa da esposa do alcaide e tomou nota do pedido.
— Uma Bitter Kas e uma dose de lulinhas, Consu — encomendou ela. — Olha, aí vêm as meninas.
Basilia falava das suas amigas como se a tivessem acompanhado a vida toda. Elas estavam-lhe agradecidas, porque a esposa do alcaide proporcionava-lhes a posição social que as suas famílias tinham perdido ao longo do tempo.
Miren Huarte e Angelita Sota abriram caminho na taberna à cotovelada. Os aldeãos, cientes de quem mandava na povoação, deram passagem às senhoras enquanto comiam lulas sem parar e se limpavam aos guardanapos acetinados, incapazes de absorver o óleo.
Encontraram Basilia a terminar a sua dose de lulas, remexendo o fino buço negro enquanto degustava avidamente os calamares. O polme acumulava-se-lhe nas comissuras dos lábios. As sobrancelhas, pintadas a traço grosso com lápis cor de mogno, erguiam-se e adquiriam vida própria a cada pedaço.
A esposa do alcaide semicerrava os olhos enquanto o óleo misturado com o calamar se espalhava pelo interior da sua boca. A única dose de lulas para que o alcaide a convidara estava quase a acabar.
— Caramba, tentei esperar por vocês, mas as lulas já estão frias — mentiu Basilia. — Se quiserem, pedimos outra dose.
Miren rejeitou a oferta, tinha a carteira vazia e apenas tempo para tomar um copo de mosto. O seu marido, Fernando Garayo, estava há vinte e três anos incapacitado, mudo e sem tino na cabeça. Não saía de casa. Ela alimentava-o com paciência, à base de sopas de alho e puré enriquecido com carne picada de galinha ou vaca.
A única trégua que tinha era o aperitivo dos domingos. Escassos vinte e cinco minutos depois da missa, enquanto esperava que don Eusebio tomasse o txikito e subisse com ela para dar a comunhão a Fernando.
— Luliiiinhaaaas, inhas, iiiiinhas. — Joxean irrompeu na taberna aos gritos.
O sorriso de Miren gelou-se-lhe nos lábios. Terminou o copo de um trago. Já estavam a chegar os mortos de fome para açambarcar a caridade de Consu. A taberneira separava sempre alguma lula para Joxean e punha-a na conta de outro cliente. O mosto corria por sua conta. Sole entrava de cabeça baixa, pedia um copo de água e mastigava a sua penúria sem mais.
Miren não suportava a ideia de partilhar o mesmo espaço com o rapaz. Via nele o mesmo sorriso apalermado do marido, o mesmo olhar quente, o mesmo corpo robusto rematado por membros grandes e desajeitados. O atrasado era o seu castigo. O bastardo de Fernando, fruto de um amor fugaz com a bela Soledad. O segredo mais bem guardado de Miren. A sua vizinha da frente.
[1 Alcaide, em português, do espanhol alcalde: autoridade administrativa espanhola equivalente ao presidente da câmara municipal em Portugal. (Nota do T.)
Basilia, animada e pespineta, pendurou-se no braço do marido quando saíram da taberna a caminho do seu velho Ford. Tinha parado de chover e a clientela que desfrutava da esplanada aproveitou para se aglomerar em torno do alcaide. Ángel, entre agradado e aborrecido, mostrava-se impaciente a cada passo que tentava dar.
— Senhor alcaide, a minha casa de lavoura continua sem eletricidade e sem asfalto — recordou-lhe Susín, criador de gado do alto de Las Muñecas. — Temos de pensar em como havemos de resolver o assunto.
— Susín, querido — interveio Basilia. — Vamos arranjar uma forma de remediar isso.
Ángel sentiu a ira trepar-lhe pela garganta. Escapou silenciosamente ao enxame de pedintes e saloios e meteu-se no carro. Como uma música de fundo, Basilia continuava a tagarelar. Discorria sobre o prazer do aperitivo, o guisado de vitela que tinha preparado e o seu encontro com a prima Loli, que a esperava às cinco para lhe arranjar umas blusas.
O alcaide de Sopuerta atravessou a vila sem trocar palavra enquanto a voz cantarina da sua esposa descrevia todos os mexericos, passados e futuros, do bairro de Mercadillo. Subiu pela rua Lehendakari Aguirre e saudou com três buzinadelas Miren e don Eusebio, que ia dar a comunhão ao seu marido. Na rotunda, virou para o bairro de La Baluga e, passando pela antiga oficina do ferreiro, virou à direita e estacionou à frente da sua quinta.
A casa senhorial era constituída por um bloco maciço, um único cubo de pedra de cantaria implantado sobre duzentos metros quadrados de área útil, com um telhado de quatro águas e um terreno amplo nas traseiras onde havia uma horta.
Basilia foi a primeira a sair do carro e alcançou o portão antes do marido. Introduziu a chave, rodou-a e empurrou para dentro a porta de madeira maciça. Entrou e deixou a mala sobre uma pequena mesinha. Ángel tirou a chave e fez deslizar a lingueta de metal do interior. Com a porta fechada a sete chaves, começou o derradeiro inferno da última dos Mendieta.
O marido estendeu o braço e prendeu-a por trás, agarrando-a pelos cabelos da nuca. Com um gesto decidido, fê-la despenhar-se de cima dos sapatos pretos de salto fino e, na queda, Basilia partiu o tornozelo direito. Ficou caída à mercê do seu torturador. Encolheu-se sobre si mesma, em posição fetal, e recebeu uma chuva de pontapés nos rins e na parte inferior das costelas.
Ángel pisoteou o corpo da mulher até que ela se afogou num soluço lamuriento. Não atingiu uma única parte do corpo onde qualquer ferimento pudesse ser visto pelos habitantes da vila. Evitou as pernas, os braços e o rosto. Cuspiu-lhe para a cara e deixou-a caída, dorida, com o pé fraturado e pendurado.
— Isto é por seres linguareira, intrometida e uma puta — disparou ele.
Nesse momento, Basilia sentiu uma dor asfixiante no lado direito, como se um objeto pontiagudo se lhe tivesse cravado por baixo do pulmão. Sentia-se tonta, com a cabeça a andar à roda. A cuspidela do marido deslizava-lhe pela face. Então, sentiu-se aliviada. Ele costumava cuspir-lhe na cara quando dava a sova por terminada.
Basilia ainda sentia o gosto das lulas na boca e o cheiro da vitela com batatas que tinha deixado preparada na cozinha. Lembrou-se do seu encontro às cinco com a prima Loli, que lhe ajustava a roupa ao seu corpo delgado enquanto lanchavam biscoitos e café com um cheirinho de anis. Perguntou-se se ela daria pela sua falta.
Sorriu no preciso momento em que o seu marido virava a cabeça e lhe intercetava o olhar. Ao detetar-lhe na boca uma expressão próxima da felicidade, encolerizou-se. Aproximou-se da porta da entrada, pegou numa trela de couro e, ao abandonar a casa senhorial, ameaçou a mulher.
— Isto ainda não acabou — preveniu-a ele, com um grito.
E, então, o terror penetrou nos tímpanos de Basilia. Começou a choramingar. Sabia que Ángel ia regressar com a villana.
Miren subiu a encosta da Lehendakari com don Eusebio, decidida a contar ao padre o que se passava em sua casa. Chegaram à entrada do prédio, ela olhou para uma das janelas do primeiro andar e confirmou desde a rua que Sole já tinha chegado.
Guiou o sacerdote pelos sete degraus de granito e alcançou a porta da esquerda. Quando rodou a chave e a abriu, sem sequer pôr um pé dentro de casa, já notava o odor. Aquele odor. Um aroma a narcisos que aparecera há umas semanas. Impregnava a entrada do apartamento e conduzia até ao quarto do marido. Miren seguiu o rasto da fragrância. Deixou à direita a pequena sala de visitas e depois a cozinha, desembocando no aposento onde, há mais de vinte anos, Fernando desafiava a morte.
— Padre, venha por aqui. Está a notar? — perguntou Miren, farejando o ambiente.
— A notar o quê? Que cheira bem? — respondeu o padre.
— O cheiro a narcisos, padre. Não há narcisos nesta casa — explicou Miren.
— Deves ter usado algum ambientador. — Don Eusebio não deu importância ao facto; parecia-lhe uma minúcia.
Miren tinha a sensação de que a alma do seu marido tinha ficado presa na casa para a atormentar pelo que fizera. Olhou-o e voltou a desejar-lhe a morte. Não podia contar a don Eusebio o seu pecado e não sabia como lhe pedir para expulsar o espírito que lhe amargurava a existência.
O padre avançou até à cama onde Fernando repousava, impoluto, vestido com o pijama azul de algodão e enfaixado em lençóis de flanela brancos. Todos os domingos, antes da missa, Miren lavava-o cuidadosamente, penteava-o com risco ao lado e punha-lhe umas gotinhas de Brummel.
Don Eusebio retirou a hóstia de uma caixinha pequena de madrepérola, que guardava no bolso, e levantou-a com as duas mãos acima da cabeça.
— O corpo de Cristo — proclamou, revirando os olhos.
Miren, de cabeça baixa e as mãos entrelaçadas, sussurrou «ámen». O padre pousou a lâmina de pão ázimo sobre os lábios de Fernando. Como este continuava sem dar mostras de movimento, acabou por tomá-la ele próprio. Traçou-lhe o sinal da cruz na testa e deu a comunhão por terminada.
Ela aproveitou para lhe falar da presença. Um espírito, explicou-lhe ela, que vagueava pela sua casa, impregnando o caminho da porta de entrada até ao quarto de Fernando com um perfume delicado a narcisos.
— O que dizes, filha? — respondeu o padre, incrédulo. — Sabes bem que a Santa Madre Igreja proíbe a crença na existência de espíritos.
— Pois digo-lhe que um deles me procura, padre, sabe Deus para quê — insistiu ela.
Durante as últimas semanas, Miren notara que certos objetos mudavam de lugar sem motivo aparente. Ao princípio, não ligou. Supôs que ela própria os tivesse mudado de um sítio para o outro. Depois, foi armando pequenas armadilhas ao espírito para provar que não estava louca. Deixou o jarrão com mimosas sobre a cómoda e encontrou-o sobre a mesa-de-cabeceira, colocou o pijama lavado de Fernando aos pés da cama e, horas depois, encontrou-o debaixo da almofada.
Miren convidou o padre a entrar na cozinha e a sentar-se. Pôs o avental e aproximou-se da panela da sopa para lhe servir uma malga. Deitou-lhe um bom esguicho de vinho branco. O padre pegou na tigela com as duas mãos, adicionou-lhe uma boa dose de cubos de pão torrado e devorou a sopa. Don Eusebio tinha tanta fome como gosto pelo vinho, e isso, aos olhos de Miren, tornava-o um ser manipulável. — Prá ruuaaaaa, prá ruuaaaaa! — Miren sobressaltou-se com a gritaria de Joxean nas escadas.
Assim, aproveitou a ocasião para explicar ao padre que o rapaz a incomodava, especialmente na igreja.
— Padre, o caso do atrasado tem de ser resolvido — sussurrou ela. — Que ele não me ouça, sabe que mora em frente, mas tem de lhe proibir a entrada na igreja, a ele e à mãe.
— Miren, não podemos expulsar da igreja nenhum filho de Deus. — O padre fez-lhe sinal para voltasse a encher a tigela da sopa.
— O senhor é que sabe, padre, mas vai chegar o momento em que nós, os paroquianos, nos vamos fartar — advertiu ela, com veemência. — E sabe que o pároco de La Baluga anseia unir as duas paróquias e ficar com todos os devotos e com o ofertório dos domingos.
Pouco faltou a don Eusebio para que se engasgasse com o caldo. Nunca uma mulher o ameaçara de modo a deixá-lo atarantado.
— Filha, o que te fez o rapaz? — atreveu-se a perguntar.
— Existir, padre. A sua mera presença é uma ameaça à minha — respondeu ela.
E aí o padre compreendeu que era ele quem podia manipular Miren para se livrar do tolo da povoação.
* * *
Sole começou a fritar os croquetes quando a tempestade rebentou. Já tinha passado um bom bocado desde que vira entrar Miren e don Eusebio pela porta. De facto, estranhava não ter visto sair o padre. Não costumava demorar tanto a dar a comunhão a Fernando. Mesmo quando o óleo começou a rechinar, o céu plúmbeo tornou-se negro como as fauces de uma besta e descarregou os primeiros relâmpagos sobre o cume de Las Muñecas. Cinco segundos depois, ouviu-se o som do trovão. A tempestade ainda andava longe, mas depressa chegaria ao bairro de Mercadillo e teriam de ficar em casa.
— Joxean, maitia, hoje não podemos sair.
A cara do rapaz mudou. Deixou de garatujar a imagem de um casarão degradado rodeado de flores brancas e amarelas e encarou a mãe.
— Nããooooooo, ama, nãooooooo! — O seu grito era um lamento. — Preciso de apanhar flo… flo… flores!
— Colhemo-las noutro dia, filho.
Joxean, o homenzarrão com mente de criança, chorou desconsolado como se lhe doesse a alma. Sem pensar, calçou as botas verdes de borracha, as de cano alto, e vestiu o impermeável azul-marinho. Abriu a porta e desceu para a entrada do prédio.
— Prá ruuaaaaaaaaa, prá ruuaaaaaaaaaa! — anunciou, aos gritos.
Abriu a porta de metal com violência e ficou à intempérie, no meio de uma chuva densa. Permaneceu ali, com os olhos semicerrados, o cabelo a pingar água e de costas para a janela, de onde a mãe o vigiava.
Miren, alarmada pela escandaleira, observava a cena da cozinha.
— Está a ver, padre? Um dia destes vamos ter um desgosto com aquele palerma.
Sentiu um calafrio percorrê-la ao ver o atrasado olhar para a sua janela com um sorriso macabro. A balançar-se para a frente e para trás sobre os calcanhares. Cumprimentando-a.
Sole, pelo contrário, suspirou de alívio na sua cozinha. Joxean tinha parado de fazer alarido. O rapaz movia a mão esquerda num gesto de cumprimento, escondendo a mão direita atrás das costas. Apertava o punho, já arroxeado, asfixiando os narcisos brancos e amarelos que lhe restavam.
Ángel demorou quarenta e sete minutos a ir e voltar da antiga casa de lavoura do avô. Saiu de casa batendo com a porta, entrou no todo-o-terreno e sentiu-se a ferver de raiva. Ao invés de outras tareias, nesta não tinha descarregado toda a sua raiva. O alcaide atirou a trela de couro para o assento do lado, destravou com violência o travão de mão e carregou a fundo no acelerador. Rangeu os dentes e, com os maxilares cerrados, começou a gritar e a espumar pela boca.
Assim avançou o demónio pelo bairro de La Baluga durante duzentos metros. Angelita, amiga íntima da sua esposa, dirigiu-lhe um sorriso e saudou-o com a mão mesmo antes de abrir a porta de casa. Estranhou que Ángel não lhe retribuísse o gesto, mas não deu grande importância ao caso e entrou apressada no prédio porque já eram horas de almoço.
O alcaide foi-se acalmando, ciente de que os habitantes da vila identificariam o seu veículo. Respirou fundo à medida que subia pela estrada íngreme e sinuosa. As casas desapareceram, dando lugar a eucaliptos e pinheiros. Por entre o arvoredo, um punhado de casas espalhava-se ao longo da estrada.
Ángel travou à frente do número oito e estacionou o todo-o-terreno junto da cerca de madeira de acácia. Saiu do carro com a trela na mão e rodeou a propriedade por um dos lados até chegar aos antigos estábulos, hoje vazios. Ali estava a cadela villana. Começou a ladrar assim que o sentiu chegar.
— Argi, minha cadelinha linda, como estás? — cumprimentou ele, antes de abrir a cancela.
Era um homem alto e corpulento, uma massa de músculos e gordura que ainda se mexia com agilidade aos cinquenta e três anos. Começou a chover, e Ángel amaldiçoou o céu. Saíra de casa com a roupa de igreja: calças pretas de fazenda, casaco da mesma cor e sapatos de pele lustrosos à força de escova.
Nesse momento, como um clarão, lembrou-se do motivo que o levara a procurar a cadela. Abriu a porta enfurecido, contendo o impulso do animal, que se empinava para lhe dar as boas-vindas. Surpreendeu-o um fedor a urina e estrume rançoso e virou a cara para o lado enquanto abraçava a cadela e lhe prendia a trela de couro à coleira.
A Argi era calma e brincalhona, uma villana das Encartaciones, uma raça autóctone que se usava para guardar gado. De pelo tigrado e com cerca de 35 quilos, adorava fugir da quinta para seguir o rasto das corças.
Ángel abriu o porta-bagagens e torceu o nariz. Não podia meter ali a cadela. Tinha-se esquecido de que estava ocupado, cheio de flores até cima. Pensou em afastá-las para arranjar espaço, mas logo descartou a ideia. Imaginou que a Argi se deitaria em cima delas e que as estragaria, pelo que decidiu pô-la no banco de trás.
A cadela ficou impaciente assim que entrou no jipe, não gostava de sair da propriedade e, além disso, estava com fome. Começou a ganir. Ángel experimentou uma estranha mistura de sentimentos. Impaciência por chegar a casa e fazer com que Basilia pagasse, e um desejo cego de possuir Consu, a viúva do taberneiro que estava em dívida para com ele há anos.
* * *
Basilia, espancada e abandonada no chão gelado do casarão, deixou de sentir dores quando começou a pensar na morte. Longe de a encarar como o final da sua vida, via-a como um alívio. Um alívio para a sua existência miserável de fome, pancada e aparências. Durante os quarenta e sete minutos que o marido esteve ausente, rezou para que a morte a levasse depressa, com a roupa de domingo que tinha vestida, com os lábios pintados de vermelho e os sapatos de salto.
A alma gelou-se-lhe quando ouviu chegar o marido com a villana. Nunca gostara do animal, porque a olhava de forma desafiante e ladrava-lhe sempre que se mexia ou até quando fazia um gesto suave. Ángel rodou a chave na fechadura, abriu a porta suavemente e, uma vez no interior, fechou-a com força e soltou a cadela. Basilia entrou em pânico, indefesa como estava, estendida no chão. Tentou mexer-se, mas a villana saltou para cima dela, pondo-lhe as patas sobre o peito, pressionando uma das costelas partidas e encostando o focinho ao rosto, deixando cair a baba sobre a boca trémula da mulher.
O alcaide entrou na cozinha e regressou à sala com uma panela de ferro fundido, de cor vermelha e tamanho médio. Tirou-lhe a tampa, deixou-a sobre o aparador e aproximou-se de Basilia com um sorriso trocista.
— E então? A que saloio vais arranjar agora água e luz? — perguntou ele, com fanfarronice. — Não me lixes, Basilia, porque não tens onde cair morta.
Sentiu como o marido entornava lentamente o caldo, as batatas e a tenra carne da alcatra por cima dela, ao mesmo tempo que a villana devorava a comida sobre o seu corpo. Arranhava-a com o focinho e com os dentes. Deu-se conta de que os seus nervos se retesavam, de que os seus membros se eletrizavam e de que o seu corpo ia perdendo força.
Começou a suar. Sentiu um mal-estar no estômago, que se transformou em náusea, e começou a sentir-se tonta. Queria gritar, mas a voz ficara-lhe presa na garganta.
Por fim, Ángel ficou cheio daquele género de satisfação que o fazia sentir-se poderoso. Acariciou o rosto da sua esposa com as costas da mão, esfregando-lhe o anel de sinete que usava no dedo mindinho.
— Não é hoje que vais morrer — declarou ele.
Nesse preciso instante, ela sentiu uma dor que lhe estrangulou o peito e lhe cortou a respiração. Abriu e fechou a boca como um peixe para engolir ar. Como em tantas outras ocasiões, Basilia pressentiu que talvez conseguisse sobreviver ao espancamento, mas não ao castigo do marido. Perdeu os sentidos, deslizando docemente para uma serena inconsciência, sem saber que Ángel a tinha deixado muda para sempre.
Angelita sentiu crescer água na boca ao pensar nos babarrunak que preparara na noite anterior e que repousavam sobre a bancada do fogão a lenha. Expectante, estalou a língua contra o palato da dentadura postiça ao mesmo tempo que levantava a tampa do tacho de ferro. Os feijões encarnados, já frios, flutuavam a custo num caldo espesso e escuro, acompanhados de meio chouriço, meia morcela e um pedacinho de orelha.
A professora sempre foi a birrocha da povoação, a eterna solteirona. Demasiado inconformista, demasiado inteligente, demasiado moderna. Os alunos e as suas famílias respeitavam-na e olhavam-na até com alguma admiração.
Angelita colocou duas conchas de feijão com chouriço numa panela pequena, e deixou o resto no tacho para o aproveitar durante a semana. Abriu a portinhola do fogão a lenha, meteu lá dentro um toro de azinho e fechou-a de novo. Com o gancho de ferro, levantou da chapa a argola de menor diâmetro e retirou-a. Atirou lá para dentro um papel enrolado e acendeu-o com um fósforo. Quando a chama aumentou, pôs a panela pequena sobre o lume e em poucos minutos os babarrunak começaram a borbulhar. Retirou-os do lume, despejou-os cuidadosamente num prato fundo da Duralex, cor de âmbar, e sentou-se à mesa.
A professora pegou numa colher e provou a mistura perfeita de feijão e chouriço. Serviu-se de um generoso copo de vinho tinto e bebeu um golinho. Cortou uma boa fatia de pão e partiu uns pedacinhos, que depois mergulhou no molho. No primeiro domingo de cada mês, a professora permitia-se esta homenagem.
O toque do telefone sobressaltou Angelita. Ergueu-se de um salto, limpou os lábios ao guardanapo de linho branco e aproximou-se do aparelho fixo do corredor.
— Estou — saudou ela, aclarando a voz.
— Angelita, querida, arratsalde on. — Era Loli, a prima de Basilia. — Já te arranjei a saia. Envio-ta esta tarde pela minha prima ou vens lanchar connosco a Zalla?
Olhou pela janela e viu os dois carros estacionados à porta da casa senhorial de Basilia. Pensou que Ángel levaria a esposa a casa da prima e não quis incomodar o casal.
— A tua prima que ma traga, maitia, porque está a chover e não me apetece sair de casa — desculpou-se Angelita.
Loli despediu-se. Desligou o telefone e avançou para o quarto de costura. Cortando dois fios, desprendeu a saia da sua amiga Angelita da máquina de costura. Dobrou-a cuidadosamente e meteu-a num saco de plástico branco. O rosto iluminou-se-lhe ao pensar no lanche com Basilia. Tinha comprado duzentos e cinquenta gramas de bolachas de manteiga e uma garrafa de Anís del Mono.
* * *
Sole abriu a porta de casa a Joxean com um sorriso cheio de doçura e uma toalha de algodão cor de canela nas mãos. O rapaz descalçou-se sobre o capacho, antes de entrar em casa com o ramo de narcisos. Sole calçou-lhe os chinelos de andar por casa, secou-lhe o cabelo, mexendo as mãos com determinação e, quando terminou, deu-lhe um beijo.
— Amaaaaaaa! — lamentou-se Joxean. — Es es… estes são os últimos — anunciou ele, erguendo os sete narcisos —, já não tenho mais.
— Maitia, não te preocupes — tranquilizou-o Sole.
— Temos de tra… tra… trazer mais narcisoooooos! — Joxean chorava, desconsolado. — Se não houver narcisos, virá a morteeeee!
A verdade é que a morte rondava o bairro de Mercadillo há mais de vinte anos, tentando deitar a mão a Fernando. Com trinta e oito anos, os vizinhos encontraram o seu corpo inconsciente nas traseiras do seu prédio, semioculto pelo matagal do barranco de Baldezebi. O arquiteto atirara-se de uma das janelas de sua casa, tomado pelo terror. O rosto ainda esboçava uma careta sinistra, como se tivesse visto o horror cara a cara.
Miren, beata como era, sempre afirmou que o marido quis matar-se para fugir de algum demónio. Que enlouqueceu sem motivo e se atirou pela janela sem que ela pudesse fazer nada para o impedir porque tinha nos braços o pequeno Joxean, com apenas alguns meses. Sole tinha ido à loja da frente comprar ossos para a sopa e pedira-lhe para tomar conta do bebé.
A esposa de Fernando contava que, como era verão e tinha as janelas abertas, ouviu um baque seco acompanhado de um estalido. Foi nesse momento que uma pedra pontiaguda partiu abruptamente, ao meio, a coluna do bem-sucedido arquiteto, deixando-o paralítico e meio morto.
Encontraram o corpo ao afastar uma espessa camada de arbustos e fetos. Fernando apareceu sobre uma cama de narcisos brancos e amarelos, com os olhos semiabertos e o sorriso desfeito. No tempo que durou a queda, quando o vento fez voltear o seu corpo até ficar na horizontal, Fernando pediu um desejo: voltar a ver o seu filho Joxean mais uma vez. Há mais de vinte anos que esperava que o destino cumprisse a promessa para poder partir em paz.
Ángel parou três minutos para desfrutar da cena dantesca que tinha à sua frente. A sua esposa agonizava, estendida no meio de uma poça pegajosa de guisado, com a voz por um fio, sem forças. A cadela ficara saciada e deitara-se no sofá do fundo. Respirou profundamente e estendeu a mão para o telefone fixo do aparador. Supôs que o seu amigo Iñaki, o médico da aldeia, ainda não tivesse começado a almoçar.
— Iñaki, arratsalde on — cumprimentou o alcaide.
— Arratsalde on, alkate. — O amigo referia-se sempre a ele como «alcaide» em basco.
— É a Basilia — anunciou, com voz grave.
