A METAFÍSICA DE IFÁ - Tilo Plöger - E-Book

A METAFÍSICA DE IFÁ E-Book

Tilo Plöger

0,0
5,99 €

-100%
Sammeln Sie Punkte in unserem Gutscheinprogramm und kaufen Sie E-Books und Hörbücher mit bis zu 100% Rabatt.
Mehr erfahren.
Beschreibung

O Oráculo é o principal instrumento de comunicação com o mundo espiritual na tradição do Candomblé. Profundamente convictos da superioridade da condução espiritual, os iniciados nessa tradição fazem perguntas às divindades antes de tomar qualquer decisão importante na vida. No Brasil, o oráculo mais popular é o Merindilogun - o Jogo de Búzios; já na África, é o tradicional Antigo Oráculo de Ifá. Esse último é um dos jogos de divinação mais antigos do mundo; praticado com caroços, ossos ou conchas. É um oráculo complexo, e no Ocidente sua prática é considerada praticamente impossível. O Antigo Oráculo de Ifá fascina as pessoas por sua clareza, profundidade, proximidade à vida cotidiana e otimismo. Acredita-se até mesmo que ele seria o precursor do oráculo chinês I Ching. O presente livro propõe uma nova interpretação metafísica do Antigo Oráculo de Ifá, para torna-lo acessível a todas as pessoas.

Das E-Book können Sie in Legimi-Apps oder einer beliebigen App lesen, die das folgende Format unterstützen:

EPUB
MOBI

Seitenzahl: 515

Veröffentlichungsjahr: 2017

Bewertungen
0,0
0
0
0
0
0
Mehr Informationen
Mehr Informationen
Legimi prüft nicht, ob Rezensionen von Nutzern stammen, die den betreffenden Titel tatsächlich gekauft oder gelesen/gehört haben. Wir entfernen aber gefälschte Rezensionen.



Tilo Plöger

Marcos de Jagum

A METAFÍSICA DE IFÁ

O I CHING AFRICANO

Título da edição original em alemão: Die Methaphysik von Ifá, das afrikanische I Ging

Copyright © 2017 Tilo Plöger

Ilustração: Maika Matthis

Tradução: Anaís Furtado

Capa e diagramação: Erik Kinting

Editora: Tredition GmbH, Hamburgo

978-3-7439-2707-0 (Paperback)

978-3-7439-2708-7 (Hardcover)

978-3-7439-2709-4 (e-Book)

O conteúdo desta obra está protegido por direitos de autor. Qualquer utilização, no todo ou em parte, exige a prévia autorização da editora e do autor. Isso se aplica especialmente à reprodução, eletrônica ou não, à tradução, à distribuição e à divulgação ao público.

Informação bibliográfica da Biblioteca Nacional Alemã:

A Biblioteca Nacional alemã registra esta publicação na Bibliografia Nacional alemã; dados bibliográficos detalhados estão disponíveis em: http://dnb.d-nb.de

“Quando olhamos para um dos signos, quando nos aprofundamos em Ci’ien, o Criativo, e em Sun, o Suave, não estamos lendo nem pensando, mas sim enxergando a água correr ou as nuvens passarem. Ali é onde está escrito tudo o que pode ser pensado e vivido.”

(Hermann Hesse sobre o I Ching)

“Por mais de trinta anos, interessei-me por essa técnica oracular, ou método de explorar o inconsciente, que pareceu-me de excepcional significado.”

(C. G. Jung no prefácio do I Ching)

“O wà láyé, mo wà láàye, ò ḿbi mí bí rún se rí.”

“Você está na Terra [vivo] e eu estou na Terra, e você ainda me pergunta sobre o paraíso?”

“Ologbon ò te ara nÍfá; omoràn ò fi ara joyè; abe tó mú ò lè gbé èkù ara è.”

“O sábio não consulta o Oráculo de Ifá para si próprio; uma pessoa com conhecimento não se proclama chefe; uma faca afiada não corta o seu próprio cabo.”

“A kì i ́gbón ju eni tí a máa dÍfá fún.”

“O adivinho não pode saber mais do que a própria pessoa para quem ele consultará o Oráculo de Ifá.”

(Provérbios iorubás)1

SUMÁRIO

PREFÁCIO

DIAGNÓSTICO E PROGNÓSTICO

IFÁ E I CHING

O ORÁCULO DO I CHING

A história do I Ching

O fundamento filosófico do I Ching

A estrutura metafísica do I Ching

A codificação do I Ching

A interpretação do I Ching

A MITOLOGIA E A METAFÍSICA DO IFISMO

O Ifismo

A origem do Universo

O surgimento do mundo material

O ser humano – entre o mundo espiritual e o mundo material

A condução espiritual do ser humano

A energia Axé

A palavra, a respiração e a visão

Uma breve descrição dos Orixás

O significado dos Odus

O ORÁCULO DE IFÁ

A Mitologia

Os instrumentos

O procedimento

Técnica e princípios do jogo

A interpretação metafísica

A dedução de medidas de apoio

A ASCENSÃO EM IFÁ

Tudo é Um

Tudo é Dois

Tudo é Três

Tudo é Quatro

OS ARQUÉTIPOS EM IFÁ

O termo complexo

O termo estrutura psíquica

O termo persona

METAFÍSICA E HERMETISMO EM IFÁ

A Metafísica

O Hermetismo no âmbito da Metafísica

Metafísica e Hermetismo em Ifá

INTERPRETAÇÃO EXEMPLIFICATIVA DO ORÁCULO

A pergunta em questão

1º Passo: a revelação dos Odus

2º Passo: a interpretação dos Odus

3º Passo: os campos de interpretação do Opon Ifá

4º Passo: a geometria dos Odus

5º Passo: o estado do Odu

6º Passo: a mutabilidade do Odu

7º Passo: a interpretação dos elementos e dos Orixás

8º Passo: as interfaces com o Merindilogun e a magia

PALAVRAS FINAIS

BIBLIOGRAFIA

PREFÁCIO

Os questionamentos sobre a essência da vida e sobre o futuro pessoal são tão antigos como a própria humanidade. Ambas as temáticas estão relacionadas, pois não é possível fazer um diagnóstico do estado inicial sem primeiro entender o que mantém o mundo unido e o que é característico do ser humano. E sem compreender o estado inicial, não é possível criar um modelo que seja capaz de enxergar todas as relações que determinam o futuro. Portanto, ninguém é capaz de fazer uma declaração fiável sobre o futuro sem entender a essência da vida.

As questões sobre a essência/o ser perseguem o ser humano desde os princípios da Era Egípcia. Haveria uma essência permanente e imutável em todas as vidas, ou algo semelhante a ela? Se a resposta for positiva, como ela poderia ser descrita e como poderíamos encontrá-la? Seria ela uma manifestação do mundo espiritual – devendo, portanto, ser descrita de forma qualitativa –, ou estaria mais sujeita às leis da Física, que podem ser descritas matematicamente? Sem dúvidas, nas fases primordiais da Filosofia, a humanidade acreditava em um princípio espiritual. A teoria dos elementos teria sido, portanto, uma das primeiras tentativas de descrever as possíveis características dessa essência.

Os métodos intuitivos de prever o futuro existem desde a Pré-História. Ao longo dos anos, e no âmbito de diferentes culturas, eles foram ampliados ou em parte complementados com métodos objetivos de interpretação de símbolos. É provável que a questão do futuro tenha precedido a questão da essência, conduzindo-nos a este seguinte dilema imprescindível. Na busca de uma fórmula universal, os modelos de diagnóstico e prognóstico se tornaram no decorrer dos séculos cada vez mais abstratos e quantitativos. Surgiram novas linhas de pensamento, como as da Matemática, da Física e da Economia, que serviram como fundamento teórico para a interpretação de símbolos. Quanto mais complexos esses modelos ficaram, mais suas interpretações necessitaram ser completadas com a experiência e a intuição, para que as descobertas realmente úteis pudessem ser extraídas dessa sabedoria.

Até hoje, nenhum modelo foi capaz de representar a realidade – com exceção de alguns ramos limitados da Física –, e menos ainda de prever o futuro. A história do diagnóstico e do prognóstico é um ritual que se repete, um ritual cíclico em que novos modelos são celebrados, e os mais antigos demonizados. Ao mesmo tempo, as ideias antigas sempre são resgatadas e reformuladas.

Analisando o passar dos milênios, pode-se distinguir três escolas de pensamento do diagnóstico e do prognóstico, que hoje coexistem:

1. As inspirações divinas de caráter intuitivo, subjetivo e empático, como o Oráculo de Delfos ou as consultas xamânicas aos espíritos;

2. Os sistemas de interpretação de símbolos de caráter objetivo, analítico e espiritual, como os oráculos do I Ching e de Ifá;

3. Os sistemas de interpretação de símbolos de caráter objetivo, analítico, baseados na experiência e na observação, como as modernas análises de gráficos da bolsa de valores e os diversos modelos econométricos.

À primeira vista, tendemos a pensar que a Ciência e o ser humano da modernidade se sustentam principalmente nos modelos numéricos (também os números são símbolos). Entretanto, isso está longe de ser verdade. A Ciência emprega perfeitamente métodos subjetivos – veja o exemplo do método Delphi de pesquisa de especialistas. A humanidade está vivendo um renascimento intenso de muitas técnicas de divinação, como o Tarô e o I Ching. As três escolas de pensamento e suas respectivas técnicas coexistem lado a lado, justamente por serem indispensáveis e porque nenhuma das três dimensões parece ser capaz de responder sozinha às questões sobre a essência do ser humano ou o futuro.

O renascimento das descrições qualitativas do mundo é um processo “natural” em um mundo cada vez mais quantitativo. As pessoas sentem que todos esses algarismos, modelos numéricos e mensurabilidades mais bem reduzem o campo de visão, limitando seu tempo, do que conduzem a novas visões ou inovações. Nenhum algarismo ou método de medição teria sido capaz de prever a evolução do cavalo ao automóvel, menos ainda de causar essa mudança. Nenhum número é capaz de realizar a renovação da democracia, que é tão necessária. Para isso, é necessário que haja novas visões e criatividade, ou seja, dimensões qualitativas capazes de descrever, de idealizar a vida e a existência.

O renascimento da previsão do futuro de caráter qualitativo é também um resultado do desejo do ser humano de vivenciar a espiritualidade e a mística. Muitas pessoas se sentem conectadas espiritualmente a “algo” – seja a Natureza, Deus, ou qualquer outro conceito que represente isso –, mas não querem estar sujeitas às instituições. As religiões e igrejas arrastam uma pesada carga histórica e são na maioria das vezes dogmáticas. Para poder expressar sua espiritualidade, as pessoas buscam cada vez mais as tradições alternativas, sejam elas novas ou antigas. E com isso elas tentam descobrir seus próprios métodos de interpretar os aspectos espirituais do mundo, seja no âmbito pessoal ou global. As questões do destino pessoal e da condução espiritual estão cada vez mais presentes na consciência coletiva.

Ao perguntarem ao Dalai Lama, em uma entrevista, sobre suas fontes de sabedoria, ele respondeu, humildemente, que se apoia em três pilares antes de tomar uma decisão: na sua intuição e experiência pessoal, nos especialistas e intérpretes das análises objetivas, e também no Oráculo Nechung do estado tibetano.

Seja como for, a realidade, a verdadeira essência das coisas, sempre se manterá inalcançável. Já Platão havia descrito a realidade como uma mera sombra na parede. É por isso que todos os modelos de interpretação da realidade são apenas modelos com premissas específicas.

A realidade é constituída por muitas qualidades e algumas quantidades; por muita subjetividade, relatividade e pouca objetividade. Portanto, é lógico, e até mesmo sensato, pensar que os três pilares que Dalai Lama mencionou se manterão vivos, sustentando as previsões e as tomadas de decisão. Sabiamente, as três formas de interpretação continuarão a existir lado a lado.

Entre os sistemas de interpretação mais antigos, que sobreviveram aos séculos, demonstrando ter um valor duradouro, destacam-se o I Ching, praticado na Europa e na Ásia, e o sistema de Ifá, na África e em algumas regiões da América do Sul. Os dois sistemas existem há milênios e possuem estruturas muito semelhantes. Não é à toa que alguns livros já especulam que o sistema de Ifá, supostamente o mais antigo, possa ter dado origem ao I Ching. Com o comércio, o oráculo africano pode ter chegado à Ásia – antes ou durante a era da Civilização Egípcia – onde teria sido simplificado e finalmente reinterpretado filosoficamente de forma mais ampla.

Evidentemente os dois sistemas se baseiam em um código binário, que aparenta ter se desenvolvido a partir de questões simples de sim/não. O sistema de Ifá evoluiu sistematicamente a partir da multiplicação da polaridade (2-4-16-256); já o sistema do I Ching foi transformado por um antigo aprendiz em um sistema de trigramas e hexagramas. Apesar dessas diferenças, os dois sistemas possuem os mesmos elementos básicos. Ambos eram praticados antigamente com materiais naturais (o milefólio e o Obi, também conhecido como noz-de-cola) e, posteriormente, passaram a ser jogados com moedas de pagamento (moedas na China e búzios na África).

Os sistemas oraculares do I Ching e de Ifá evoluíram por caminhos diferentes. O I Ching foi abstraído, ganhando uma base filosófica, reivindicando o posto de uma doutrina universal que guarda respostas para todos os fenômenos. O I Ching foi registrado por escrito, tornando-se um modelo mundialmente popular de explicação e interpretação do mundo. Por sua vez, o sistema de Ifá manteve sua estrutura tribal e continua sendo, em larga medida, um modelo de divinação transmitido oralmente. Devido às situações reais do contexto de vida na África, esse modelo enfoca os problemas do cotidiano, através de seus milhares de versos. Ainda hoje, ele continua a ter um foco na prática, fornecendo instruções bem concretas. Esse sistema tem uma ligação muito forte com a tradição espiritual.

Conceitualmente, o sistema de Ifá é hermeticamente mais “correto” do que o sistema do I Ching, por distinguir de forma clara seus elementos básicos constitutivos – as estruturas e as qualidades (ver mais abaixo) –, e por manter sua regra de diferenciação através de potências de dois. Esses são alguns dos motivos pelo qual o I Ching necessita incluir, além dos quatro elementos básicos já conhecidos, outros “elementos de apoio”, como a Montanha, o Lago, o Trovão e o Vento. Já o sistema de Ifá funciona com os quatro elementos básicos – a Água, a Terra, o Ar e o Fogo.

Outra vantagem do sistema de Ifá é sua orientação prática, já que esse oráculo, como já foi dito antes, fornece às pessoas instruções bem concretas. Além disso, esse sistema tem uma proximidade com a mitologia que costuma ser bastante coerente, facilitando a prática de rituais de magia. Suas instruções não se limitam ao plano do conhecimento – elas vão mais além, permitindo que o futuro seja ativamente influenciado através de rituais mágicos.

Finalmente, o fundamento mitológico de Ifá também é muito útil para a compreensão e interpretação das polaridades, dos campos de tensão e das forças que exercem influência sobre os caminhos. Esse aspecto não está ancorado no I Ching. Entretanto, nos séculos mais recentes houve uma tentativa de incluí-lo nessa tradição, já que ambos os oráculos compartem os mesmos elementos básicos: as possibilidades, os caminhos e as mutações de uma estrutura em outra (os hexagramas no I Ching e os Odus em Ifá). As forças que exercem influência sobre esses caminhos só podem ser enxergadas quando são relacionadas às polaridades internas do ser humano em sua correspondência espiritual. Para isso, é necessário contar com um fundamento espiritual, um fundamento mitológico. No sistema de Ifá, os 16 Orixás – as divindades como correspondência espiritual do mundo interior do ser humano – respondem através de seus respectivos Odus – os caminhos. O I Ching não possui esse nível divino de correspondência espiritual do ser humano. As tradições mais recentes, como o Taoísmo, incluíram elementos espirituais em suas interpretações, mas o I Ching não possui um aspecto holístico como o Ifá.

Apesar dessas vantagens, o Ifá tem duas grandes desvantagens. Em primeiro lugar, esse sistema nunca foi registrado sistematicamente por escrito. Não existe um padrão de técnica para esse oráculo, nem para sua interpretação. Em segundo lugar, esse sistema jamais foi abstraído e estruturado sobre bases herméticas e filosóficas. Ainda hoje, para praticálo, é necessário conhecer milhares de Itans – os versos de Ifá –, que contêm interpretações e ao mesmo tempo instruções. Sendo assim, não é possível interpretar os Odus de forma abstrata.

Essas duas desvantagens limitam bastante a prática desse oráculo milenar, tão único e valioso. Pode-se, portanto, observar as seguintes características no Oráculo de Ifá:

● A prática desse oráculo permanece restrita aos sacerdotes iniciados na tradição, que conhecem de cor os milhares de versos. Dessa forma, o oráculo como sistema de interpretação não pode ser praticado por uma pessoa comum;

● A prática desse oráculo pode durar horas ou até mesmo dias. Isso é um grande empecilho para sua prática e difusão no mundo atual, que requer tanta velocidade;

● É quase impossível discutir e analisar filosoficamente esse sistema. Sem um registro por escrito ou um fundamento claro não é possível desenvolver o lado metafísico desse oráculo. As interpretações dos versos podem dar muitas instruções para uma vida virtuosa, mas dão poucos conhecimentos abrangentes sobre o próprio mundo;

● Os fundamentos herméticos do Oráculo de Ifá nunca foram interpretados filosoficamente. Jamais foi expressa uma ambição de definir uma teoria unificadora que decodifique o mundo através desse oráculo. Ao longo dos milênios, com seus inúmeros versos, o Oráculo de Ifá tornou-se muito místico, físico, próximo a situações reais e concreto, e permaneceu assim. Diferentemente do que ocorreu na China, jamais foi feita uma abstração filosófica do Oráculo na África.

Essas limitações restringem a prática do Oráculo de Ifá ao continente africano. Embora as mensagens dos Itans ainda tenham um papel significativo na mitologia do Candomblé (no Brasil), da Santería (em Cuba) e do Voodoo (na Jamaica), o Oráculo de Ifá já foi substituído nessas tradições pelo Merindilogun – um oráculo mais rápido e mais fácil, que se refere a temas bastante concretos da vida cotidiana. O Merindilogun abrange temas concretos do cotidiano; ele se orienta em buscar soluções para questões do presente que afligem as pessoas que necessitam um apoio de vida.

A efetiva “morte” do Oráculo de Ifá desencadeia uma paralisação do desenvolvimento filosófico e mitológico de uma tradição que se sustenta somente em versos antigos transmitidos de forma oral. Essa tradição não tem um fundamento que viabilize uma evolução metafísica.

Uma revitalização do Antigo Oráculo de Ifá deve ser feita com um acréscimo: uma redescoberta de sua dimensão metafísica. No entanto, isso só pode ser feito se os fundamentos e as regras de interpretação forem definidos. A abstração do Oráculo de Ifá abre dimensões totalmente novas de conhecimento, trazendo novas formas de interpretações e novos conhecimentos espirituais. Com isso, um debate espiritual ou simplesmente filosófico sobre o “código genético” da vida poderia ser resgatado.

O objetivo deste livro é recuperar os princípios herméticos desse incrível oráculo, para complementar a prática do jogo, e não para substituí-la. Mais além de tornar-se praticável e interpretável, o Oráculo de Ifá deve, sobretudo, ser “imaginável” novamente, e aberto para a evolução do conhecimento. E, finalmente, ele deve tornar-se acessível para todas as pessoas que queiram consultar seu instrumentário de diagnóstico e prognóstico, que tanto auxilia na tomada de decisões.

Orientei-me em quatro dimensões para resgatar os princípios herméticos do Oráculo de Ifá:

1. No Oráculo chinês do I Ching, por ser uma forma muito semelhante de oráculo, adotado por muitos eruditos ao longo dos séculos e cujos princípios universais já deram provas de sua validade;

2. Em conceitos e modelos básicos da Filosofia de valor histórico reconhecido. A presente análise almeja dar início à interpretação filosófica do Oráculo de Ifá. A meta deste livro não é interpretar o mundo de acordo com o Oráculo, mas sim interpretar os princípios que o regem. Para que o Oráculo de Ifá se consolide como um instrumento filosófico, é necessário que ele seja analisado em relação à própria Filosofia. Dessa forma, poderemos saber onde ela se reflete no Oráculo;

3. Nas leis herméticas em especial. A consistência e a universalidade são indispensáveis para um sistema que reivindique ter decifrado, espiritualmente ou não, o código universal. Todos os elementos desse sistema devem ser claramente diferenciados. Além disso, é necessário que os princípios herméticos universais sejam respeitados. Convém sublinhar que neste ponto entende-se por hermetismo o lado espiritual e metafísico da interpretação;

4. Nos princípios do Ifismo africano. Naturalmente, a ampliação do sistema deve manter-se compatível com os princípios fundamentais da tradição iorubá do Ifismo. Ainda que a interpretação metafísica represente a liberação de crenças religiosas a favor de princípios universais, o Oráculo de Ifá deve manter-se inteiramente conectado à prática da magia ritual.

A Metafísica de Ifá não pretende ser uma analogia do Livro das Mutações do I Ching. Não é o objetivo deste livro interpretar todos os 256 Odus, em todas as posições. Isso excederia o tempo e o espaço disponíveis, além da minha própria capacidade de abstração filosófica. Este livro é uma ferramenta para que qualquer leitor ou iniciado na tradição possa ser capaz de jogar o Oráculo e interpretá-lo à sua maneira. Além disso, pretende-se também fomentar um debate contemporâneo entre os especialistas do Ifismo, especialmente os Babalorixás, as Yalorixás e os Babalaôs, sobre essa tradição tão rica. Recomenda-se a leitura dos demais livros desta série aos leitores e leitoras que queiram aprofundar-se na tradição mitológica, no Oráculo Merindilogun, como também nos sistemas numerológicos do Ifismo. Aos interessados na prática concreta e cotidiana do Oráculo, recomendo o conhecimento da mitologia. Para isso, não é necessário aprofundar-se em todos os níveis filosóficos – a compreensão do Oráculo também é possível sem um conhecimento detalhado das teorias filosóficas. As pessoas interessadas nas questões sobre o sentido, que queiram aprender sobre a metafísica de Ifá, encontrarão estímulos, ideias e propostas para interpretações e aprofundamentos no capítulo, um tanto mais complexo, sobre a filosofia.

* * *

Quem somos, os autores que reúnem o conhecimento neste livro?

Eu, Tilo Plöger, sou brasileiro. Minha família emigrou com visões empreendedoras da Alemanha para o Brasil em 1880. Depois de comple-tar o ensino médio, fui para a Alemanha, onde estudei Química e tam-bém Administração de Empresas. Durante muitos anos, fui diretor de empresas internacionais, ligadas especialmente a conceitos alternati-vos relacionados à “Saúde e Beleza”, cosméticos naturais, medicina natural etc. Ao mesmo tempo, ainda que vivendo num mundo de negócios orientado pelo objetivismo e centrado nas pessoas, estudei durante mais de 25 anos as faces espirituais e científicas de diversas tradições espirituais e fui até mesmo iniciado em algumas delas. Sou mestre de Reiki, concluí os ensinos xamânicos de Alberto Villoldo, me dediquei à Alquimia, aos esoterismos e às Escolas de Mistério do Ocidente, ao tantra, ao trabalho dos chacras e meridianos, à Medicina da Informação, ao trabalho das luzes e à Filosofia Quântica, entre outros ensinamentos. Meu objetivo central sempre foi conectar as experiências espirituais às científicas. Encontrei meu lar espiritual e meu destino no Candomblé e na Umbanda. Fui iniciado e formado nessas duas tradições, como também na tradição do Oráculo de Ifá (na medida do possível e com suas limitações) por meu amigo Pai Marcos de Jagum. Essa tradição é restringida somente aos homens.

Eu, Marcos de Jagum, fui iniciado no culto Nagô com um ano de idade. Iniciei minha caminhada na Umbanda aos dez anos, e me tornei Babalorixá aos 18 anos, na nação de Keto, com a raiz da Casa Branca, em Salvador da Bahia. Inicie meu Ilê Axé há quase 20 anos. Desde então, dedico minha vida à pesquisa e ao estudo da lei, das tradições e do culto afro.

O objetivo de nossa jornada é ampliar e aprofundar o conhecimento da raiz do Oráculo de Ifá. Sabemos que nosso caminho apenas co-meçou, e que o presente resultado nada mais é do que uma primeira síntese.

Desejamos a todos os leitores muita sabedoria e experiências que iluminem um pouco mais a existência e a ação do amanhã.

Tilo Plöger e Marcos de Jagum, 2017

Para questões pessoais e aprofundamentos, o leitor poderá contatar-nos da seguinte forma:

Fraternitade Umbandista

Irmãos Unidos na Fé

Casa do Cabolco Pena Branca

Estrada da ilha de Guaratiba, 673

Caminho da Augusta casa 13

Ilha de Guaratiba-Rio de Janeiro

Brasil CEP 23020_230

Tel +55 (21) 964573524

DIAGNÓSTICO E PROGNÓSTICO

A necessidade do ser humano de entender a essência do Universo e interpretar o futuro a partir desse conhecimento é tão antiga quanto a própria humanidade. Possivelmente, com a religiosidade, surgiu também a questão da vida após a morte e, consequentemente, do futuro. Se considerarmos o enterro dos mortos como uma prática típica da espiritualidade, podemos registrar seu surgimento por volta de 100.000 anos atrás, já que as descobertas da caverna Qafzeh, nos arredores de Nazaré, datam dessa época.

A arte rupestre das primeiras práticas xamânicas pode ser vista como fruto do estágio inicial do desenvolvimento da interpretação e da abstração. As pinturas rupestres mais antigas têm quase 50.000 anos e foram descobertas na Austrália. Essas e outras descobertas mais recentes sugerem que as ligações com o mundo espiritual são muito antigas.

Um conhecimento seguro sobre os sistemas de prognóstico dos nossos antepassados começou a ser registrado apenas a partir da invenção da escrita. Os primeiros indícios existentes são da Mesopotâmia e do Egito e têm mais de 5.000 anos. Na China, os primeiros indícios têm por volta de 3.500 anos e, na América do Sul, chegam a ter quase 3.000 anos.

Em conformidade com Cícero, Platão distingue entre a “adivinhação natural” e a “adivinhação artificial”. A primeira é uma divinação que as pessoas têm em sonhos, em transe e em visões. Ela seria uma inspiração direta dos deuses. A segunda é alcançada a partir de técnicas e métodos que o ser humano desenvolveu para decifrar as mensagens dos deuses. Entre essas técnicas, estariam as interpretações dos sinais da natureza, como a observação dos pássaros ou das estrelas, e também dos sinais humanos, como as moedas ou os ossos.

Nessa estrutura, os dois sistemas se diferenciam com base nas seguintes características:

● Intuitivo vs. analítico;

● Endógeno vs. exógeno;

● Subjetivo vs. objetivo;

● Divinatório vs. empírico;

● Inspiração vs. experiência.

Christof Niederwieser distingue três métodos de prognóstico com base nas fontes e no canal do conhecimento de cada um. Eles correspondem aproximadamente à evolução dos métodos ao longo do tempo:

1. O prognóstico visionário, que se baseia na intuição e inspiração. O canal aqui é o ser humano;

2. O prognóstico interpretativo de sinais. Ele se baseia na interpretação de sinais como manifestações materiais. O canal aqui é a natureza;

3. O prognóstico interpretativo do tempo. Ele se baseia na interpretação da morfologia do transcorrer do tempo. O canal aqui é o tempo.

Para mostrar resumidamente a diversidade e a profundidade dos prognósticos, eis a seguir uma síntese de alguns exemplos dados por Christof Niederwieser em suas duas obras sobre o prognóstico:

1. Os prognósticos visionários:

● Obsessão e transe. O Oráculo Nechung do estado tibetano, o Oráculo de Delfos, as técnicas de transe (tocar tambores, entre outras);

● Visões alcançadas através das drogas. Drogas xamânicas provenientes da América Latina (a Ayahuasca, o cacto San Pedro, o tabaco, a coca) e do “velho” mundo (o ópio, a maconha, o cogumelo mata-moscas);

● A necromancia (comunicação com os mortos). A invocação de Anúbis no Egito, a invocação dos mortos de Agripa, o culto aos antepassados na África, o Espiritismo e o animismo da modernidade;

● Os sonhos proféticos. A interpretação dos sonhos na Babilônia e no Egito, a oniromancia dos gregos e romanos, a interpretação dos sonhos no Extremo Oriente, os sonhos visionários da Parapsicologia;

● A precognição. A clarividência, a telepatia;

● A missão profética e os mitos do futuro. Os deuses brancos dos Astecas e Hopis, a missão profética no Antigo Testamento, os Livros Sibilinos de Roma, as profecias de Da Vinci, Colombo, Nostradamus, o apocaliticismo da Bíblia, as aparições milagrosas cristãs;

● Utopias e visões sociais. A Politéia de Platão, o comunismo e o marxismo, a Cidade do Sol de Tommaso Campanella, a Utopia de Thomas Morus;

● Livros sobre o futuro e obras de ficção científica. A viagem à Lua de Kepler, Wilkins e Cyrano; Frankenstein, o Homem-Máquina; Jules Verne; H.G. Wells; as distopias de Huxley e Orwell;

● A Futurologia moderna. A Economia e a Sociologia; a Futurologia de Flechtheim; as previsões de Herman Kahn e da RAND Corporation; o Clube de Roma; a avaliação do impacto tecnológico; os grupos modernos de reflexão;

● Métodos modernos qualitativos de previsão. A “Tempestade de Ideias” (brainstorming); a “Oficina do Futuro” (Zukunftswerkstatt), a Sinética (Synetics); o estudo com novatos; o estudo com especialistas; o Método Delphi; as “caixas morfológicas” de Zwicky; a análise dos impactos cruzados; a árvore de relevância e de decisão; o prognóstico rizomático; a técnica de cenários; o método sinótico e os fatores decisivos (shaping factors); as megatendências;

2. Os prognósticos interpretativos dos sinais e do tempo:

● Sinais naturais:

-Presságios e sinais milagrosos. Sinais celestiais; presságios animais e presságios de nascimento;

-Sistemas de interpretação de sinais naturais. Sistemas de sinais no céu; os auspícios na Roma Antiga; a interpretação dos elementos e o Feng Shui;

-Fisiognomia. A interpretação do corpo dos Egípcios e Babilônios; a Fisiognomia da Grécia e da China; a ciência Tridosha da Índia; a Quiromancia; a Frenologia de Gall; os fragmentos de Lavater;

-As teorias dos três tipos. Os tipos de morfologia corporal (Naturelle) de Huter; os tipos de constituição de Kretschmer; os componentes morfológicos de Sheldon;

-A interpretação do corpo da era moderna. A análise dos cromossomos; a arte de ler o rosto; a linguagem corporal e a comunicação não-verbal; A Programação Neurolinguística (PNL);

● Sinais culturais:

-Oráculos e ordálios (“juízos divinos”) da África. O Oráculo dos Azande; o Oráculo do Camundongo e da Areia, praticado na savana da África Ocidental; os oráculos animais de Mali, de Camarões e da Costa do Marfim; os ordálios de injúria; o Oráculo de Elementos, com água e fogo;

-O Oráculo de Ossos e a hieromancia (divinação a partir das vísceras). A escapulomancia no Tibete e na Sibéria; a hieromancia na Mesopotâmia; os aruspícios dos Etruscos e Romanos; a antropomancia;

-Métodos variados. O Oráculo dos Cavalos e da Batalha, dos germanos; o Oráculo de Apolo e Hermes, da Antiguidade; o Oráculo da Palavra e das Lamparinas de Manteiga, do Tibete; o Oráculo do Ovo e dos Pardais, da China; a leitura das marcas de chá e de café, a Radiestesia com vareta e pêndulo; a Cinesiologia; a Grafologia;

-O arquivamento moderno de sinais, através de medições, indicadores, estatísticas. A barra original do metro (Mètre des Archives); a medição do tempo; as normas internacionais de padrão IEC e ISO; os indicadores das Ciências Naturais e das Ciências Sociais, como também da guerra; os arquétipos mágicos;

-Indicadores econômicos e financeiros. A controladoria (controlling); os indicadores de desempenho (Balanced Scorecard), os indicadores das Ciências Econômicas; os mecanismos de mercado, como por exemplo a curva de Phillips, o barômetro de Harvard, as cotações e os indicadores da bolsa de valores;

-Pesquisas quantitativas. Os indicadores de sentimento e o barômetro de conjuntura; a pesquisa de consumidores; as pesquisas eleitorais e do Instituto Gallup; os testes de personalidade no diagnóstico de gestão;

-Indicadores clínicos e a genética. A interpretação do tipo sanguíneo no Japão; o diagnóstico pré-natal da gravidez; a detecção de anomalias cromossômicas através da medicina; a Genética;

● Sinais artificiais:

-Sorteios, os oráculos de objetos lançados e as os motores de resposta. Os sorteios dos Gregos e Romanos; o Oráculo de Amon, do Egito; a psicografia na China;

-O mundo em miniatura. O Oráculo do Cesto na África; o Oráculo de Chuvaanak, proveniente de Tuva, no sul da Sibéria; os Oráculos de Ifá, dos iorubás;

-Padrões primários e códigos universais por meio de símbolos, letras e números. O I Ching da China; a numerologia e a mística dos números; as runas germânicas; as letras e os números da Cabala judaica; o Tarô;

-Os sistemas de previsão e os modelos mundiais da modernidade. Os sistemas de previsão na controladoria; a análise fundamental; a análise técnica de gráficos; os modelos econométricos e a análise input-output; a modelagem global.

-O grande volume de dados e os dados inteligentes. O reconhecimento de padrões.

Conhecer o futuro e a essência de todas as coisas é uma curiosidade que a humanidade tem desde os princípios da espiritualidade. Essa curiosidade sempre existiu e acompanhou as pessoas, em todas as épocas e culturas. Nesse contexto, parece até estranho pensar que os modelos de cálculo modernos, baseados em números e no tempo, não sejam espirituais, pois a relevância do futuro para a humanidade já é uma questão essencialmente espiritual.

Se traçarmos uma linha lógica da evolução da história do diagnóstico e do prognóstico, podemos identificar pelo menos duas tendências do seu desenvolvimento:

● Há uma crescente objetivação, que é fruto da observação, medição e análise de fatores externos;

● Há uma crescente abstração e ao mesmo tempo um aumento de complexidade.

É interessante notar que, com a crescente abstração, a experiência e a intuição ganharam maior relevância. Há muitos dados e ao mesmo tempo tão pouco conhecimento. As empresas que extraem informações valiosas a partir dos dados conseguem ter muito mais êxito economicamente – dois grandes exemplos são Facebook e Google. Por outro lado, as grandes crises bancárias e financeiras não são detectadas por operadores do mercado, ainda que todas as informações necessárias estejam disponíveis.

Ao mesmo tempo, nota-se que os sistemas complexos requerem o uso de conceitos dimensionais cujas definições se assemelham muito a arquétipos. Isoladamente, eles representam algo superior, algo mais amplo. Essas dimensões – sejam elas números, fórmulas ou conceitos – possuem muitas características, em geral bem definidas, que em conjunto e em interação parecem funcionar como uma unidade. De certo modo, os grupos-alvo do Marketing (“gerações X, Y, Z”), os grupos com comportamento ou pensamento idêntico das Ciências Sociais e os padrões de comportamento da Psicologia são também arquetipizações.

Os oráculos mais complexos, como o I Ching e o Oráculo de Ifá, possuem essas mesmas características. A principal diferença é que os sistemas modernos não creem que o mundo material tenha uma correspondência espiritual. Eles creem que as relações causais são observáveis, mensuráveis e se refletem em fórmulas. Mas no fundo, todos os modelos contam apenas uma história. Apesar de termos facilidade em enxergar um fio condutor em relação ao passado de nossas vidas, ainda temos dificuldade em projetar esse fio condutor em relação ao futuro. Às vezes, o limite entre a magia/superstição e a Ciência é um mero manto, apenas uma palavra. Uma pessoa depressiva foi outrora um filho de Saturno; uma pessoa catatônica foi outrora possuída pelo demônio Mehazael (ver Niederwieser). É por isso que os oráculos partem do princípio de que as relações que eles definem também são códigos e fórmulas ainda não convertidos em leis científicas. Tendo isso em mente, para que os oráculos tenham um nível de qualidade, é importante que suas regras de jogo e interpretação continuem a ser definidas com um grau de abstração elevado e consistente. Só assim eles poderão sobreviver as modas da Ciência, adaptar-se aos diferentes sistemas e continuar sendo fontes de sabedoria.

Analisando a história do diagnóstico e do prognóstico e seu instrumentário, é importante ressaltar que, apesar de sofrer tanto descrédito, foram justamente os oráculos do I Ching e de Ifá que sobreviveram a todos os outros modelos, conduzindo a estruturas sociais e espirituais bastante estáveis. Isso parece ser um sinal de que esses dois sistemas possuem algo que funciona melhor do que muitos outros instrumentos.

O objetivo deste livro é aprofundar e reascender a metafísica do Oráculo de Ifá. Com a simplificação do jogo e a abstração das regras de interpretação, esse oráculo poderá ser praticado novamente, voltando a ser, sobretudo, uma fonte de sabedoria. A metafísica consistente e abrangente desse sistema enriquece o Oráculo de Ifá. Com ela, ele poderá ser novamente o que na verdade sempre foi: uma doutrina universal.

O I Ching é abordado neste livro para que, partindo da compreensão de seus princípios, possamos deduzir analogias para o sistema de Ifá. As comparações servem para facilitar a compreensão das semelhanças e diferenças, e não para valorar mais a qualidade de um ou outro oráculo. Ambos vêm provando seu valor há milênios; não será necessário questionar neste ponto a qualidade e o valor desses oráculos para a humanidade – a história já tratou de dar respostas a essas questões.

O objetivo deste livro não é explicar ou interpretar o I Ching minuciosamente. O leitor interessado nestes detalhes poderá consultar muitas obras de qualidade. A proposta do presente livro é de expor os princípios básicos desse sistema e aplicá-los – onde faça sentido – ao sistema de Ifá.

IFÁ E I CHING

Semelhanças e diferenças

O Ifá e o I Ching não são exatamente oráculos clássicos, pois não predizem os acontecimentos do futuro. Eles são sistemas de diagnóstico que analisam a mudança de um determinado estado presente do sistema em um novo sistema potencial, que não está definido por completo e ainda é influenciável. Esses oráculos revelam as estruturas no estado presente e indicam como elas poderiam estar no futuro. Eles revelam os primeiros passos dessas estruturas, ainda em estado de formação, quando o futuro ainda está por vir, mas ainda não se manifestou em concreto.

Essa característica é muito importante, pois tanto o I Ching como também o Ifá devem entender-se claramente como tradições de sabedoria, e não de adivinhação. Eles fornecem mais sabedoria do que verdade. Os oráculos de adivinhação têm um caráter julgador. No âmbito desses oráculos, o ser humano tem apenas o papel de receptor passivo da mensagem. Em contrapartida, os oráculos de sabedoria são conselheiros que veem o ser humano como um colaborador ativo do destino.

Os sistemas de Ifá e do I Ching possuem grandes semelhanças. As diferenças são resultado, sobretudo, da forma e da interpretação que cada um deles ganhou com o passar do tempo, e do vínculo que eles têm com as tradições mitológicas.

O Oráculo de Ifá surgiu da tradição mitológica, a qual também influenciou. Ele sempre foi, e continua a ser, o coração da mitologia iorubá (e também das tradições contemporâneas da Santería e do Candomblé). Ele jamais foi separado da tradição espiritual, e sempre esteve ligado a ela.

O caso do I Ching é diferente. Os manuscritos e achados históricos sugerem que o I Ching tenha se desenvolvido a partir de um oráculo simples de sim/não, quando o ser humano buscava respostas diferenciadas para as questões da vida. Com o tempo, esse oráculo se tornou mais complexo e suas respostas ganharam um maior significado. Porém, a interpretação espiritual e o fundamento espiritual só surgiram em períodos mais recentes. A literatura indica que o I Ching como um sistema próprio de divinação tenha surgido no século 9º a.C. Ele teria se desenvolvido aos poucos a partir do Oráculo de Milefólio, sob influência do Oráculo de Ossos da Dinastia Shan. A partir do século 9º, o I Ching foi se tornando uma doutrina universal, sendo que o Zhou Yi teria sido uma de suas primeiras versões. O I Ching foi combinado com os elementos (Água, Fogo, Terra, Ar), e também com o conceito do Yin e Yang. Durante a Dinastia Han (por volta de 200 a.C. – 200 d.C.), esse oráculo foi tão renomado e popular quanto o Oráculo da Tartaruga da Dinastia Shan. Ele esteve no centro da tradição confuciana e era consultado antes de todas as decisões importantes. Nessa época surgiram relevantes textos, como o Dez Asas. No século 17, o I Ching chegou à Europa. Gottfried Leibniz notou semelhanças entre o I Ching e seu sistema binário. Com as traduções do sinólogo Richard Wilhelm (1873-1930), o I Ching finalmente alcançou um público mais amplo, chegando a ser um dos exemplos mais citados na teoria dos arquétipos de C. G. Jung.

Os princípios do I Ching são especulativos e há outra versão de seu surgimento que dá maior ênfase às relações de comércio entre a Ásia e a África. Existem muitos indicadores de que o Ifá possa ter sido o precursor do I Ching. Sabe-se que no Antigo Egito havia uma cultura espiritual fortemente desenvolvida, que constituiu o fundamento das tradições espirituais do Egito e, posteriormente, da Grécia. Heródoto menciona, em seus antigos manuscritos, os “sacerdotes negros”; grandes filósofos e místicos como Pitágoras estiveram na África, em contato com a tradição espiritual dessa região, onde os jogos de divinação eram muito populares e tinham uma estrutura bastante complexa. Tendo em mente que naquela época o comércio já ligava as regiões asiáticas, árabes e africanas, é bastante provável que as tradições espirituais e rituais também tenham se misturado. As notáveis semelhanças entre os sistemas dos dois oráculos não chegam a ser uma prova, mas são sinais de que eles podem ter um princípio comum. Os búzios usados no Oráculo de Ifá também foram moedas de pagamento, tanto na África como na Ásia, durante quase 2.000 anos.

Os quadros conceituais do I Ching e de Ifá são parecidos. Ambos sistemas são binários e surgiram possivelmente do simples princípio do sim/não que, posteriormente, foi substituído pela interpretação filosófica e espiritual da luz/sombra. Ambos ampliaram o principio da luz/sombra com os quatro elementos Ar, Água, Fogo e Terra, que são arquétipos da estrutura interior, imutável e coerente das relações mais complexas. Além disso, os dois sistemas abrangem também as dimensões Céu/Ser humano/Terra. Ambos sistemas devem ser compreendidos como doutrinas de sabedoria, capazes de identificar estruturas energéticas no momento em que elas surgem.

As principais diferenças entre os dois sistemas de divinação são resultado das estruturas de jogo e da integração social de cada um no decorrer da história.

Em relação à estrutura de jogo, os dois sistemas seguiram caminhos distintos em dois pontos importantes:

1. O Ifá se manteve fiel ao princípio da potência de 2 em todas as dimensões. Nesse sistema, o mundo se diferencia sempre através de um múltiplo de 2. Portanto, cada “perna” do Oráculo de Ifá é constituída por quatro linhas, que correspondem aos quatro elementos, aos quatro pontos cardeais, às quatro dimensões do ser humano (espiritual, material, interior e exterior), da sociedade, etc. E como há o presente, mas também o futuro, as duas “pernas” de Ifá – cada qual com suas quatro linhas – constituem, juntas, 256 possíveis Odus (os caminhos do ser humano). O I Ching abandonou esse princípio ao introduzir os trigramas, através de uma terceira “linha”, os quais, por sua vez, combinados, formam 64 hexagramas. Esse sistema foi obrigado, portanto, a recodificar as mesmas dimensões, ou seja, suas regras de interpretação foram alteradas;

2. O Oráculo de Ifá manteve seu forte vínculo com a mitologia do Ifismo e continua sendo transmitido na forma oral, de geração a geração. Na África, seu enfoque está na prática diária de resolução dos problemas. O Ifá é um instrumento de diagnóstico e de resolução de problemas, pois, além de revelar informações sobre uma situação, ele dá instruções para solucionar problemas, por exemplo, através da magia. O I Ching inicialmente se separou de uma tradição espiritual e logo foi interpretado por filósofos. Ele se tornou puramente um sistema de sabedoria. Suas soluções são recomendações abstratas, e não atos concretos de magia. Nos séculos mais recentes, o I Ching foi frequentemente citado como um instrumento e fundamento para o alcance do conhecimento espiritual. Metaforicamente, poderíamos dizer que o Ifá se tornou uma medicina, enquanto o I Ching se tornou uma filosofia. Conceitualmente, devido à ligação que o Oráculo de Ifá mantém com a mitologia, as polaridades internas e as tensões do ser humano em relação a seu ambiente são reveladas no Oráculo através da interpretação dos Orixás – as divindades de Ifá. Essa dimensão não está ancorada no I Ching, e só poderia ser revelada – se tal coisa for possível – por vias indiretas. A diferença entre as conexões mitológicas dessas duas tradições já pode ser notada simbolicamente nas diferentes formas de jogo. O Oráculo de Ifá continua a ser jogado sobre o tabuleiro Opon Ifá, que representa o mundo com suas quatro dimensões, em diferentes planos. O I Ching não requer um tabuleiro. Em suas versões modernas, ambos os sistemas usam moedas de pagamento para a (de)codificação do código binário. Entretanto, no I Ching as moedas são apenas moedas, sem um significado mais profundo. Já em Ifá, os búzios são também símbolos e transmissores de energia nos rituais espirituais.

Os princípios do I Ching podem ser transferidos a Ifá, visto que os dois sistemas compartem as mesmas premissas fundamentais. Entretanto, somente alguns princípios de Ifá podem ser transferidos ao I Ching, já que o I Ching não está vinculado a nenhum panteão, muito menos a rituais mágicos de “manipulação” da realidade. Como os textos filosóficos do I Ching referem-se aos hexagramas, somente algumas partes deles podem ser aplicadas a Ifá. Os textos de Ifá também não podem ser simplesmente transferidos ao I Ching. No entanto, existem muitos princípios de interpretação que podem ser transferidos de um sistema a outro. Esses arquétipos ajudam na compreensão do lado filosófico profundo e espiritual do Oráculo de Ifá, lados estes que, em parte, se perderam na prática cotidiana da magia africana e foram reduzidos a versos individuais.

Abaixo, segue um quadro que resume algumas dimensões relevantes:

Dimensão

I Ching

Ifá

 

 

 

Código

binário

binário

Representação da realidade

estruturas

estruturas

hexagramas

Odus

Representação da polaridade

-

qualidades

-

Orixás

Princípio energético

Tao

Axé

Elementos

4+4

4

Número de elementos

64

256

Ferramentas de divinação

Milefólio

Obi (noz-decola)

moedas

búzios

Enfoque

metafísico

físico

abstrato

concreto

Fundamento

Taoismo

Ifismo

O ORÁCULO DO I CHING

A história do I Ching

A seguir, é apresentada uma breve introdução ao I Ching, de acordo com as informações que constam em Wikipédia2. Muitos livros apresentam esta definição e história ou uma versão semelhante. Como todos esses livros se baseiam nas mesmas fontes, há poucas referências na literatura ocidental sobre uma possível interação do I Ching com os oráculos africanos. Entretanto, alguns textos sobre o sistema de Ifá fazem referência a este processo; porém, talvez pelo fato de ainda serem desconhecidos, não foram considerados pela Ciência Ocidental.

O I Ching, ou Yì Jīng (o “Livro das Mutações” chinês ou o “Clássico das Mutações”), é uma coleção de desenhos de linhas e frases correspondentes. O I Ching é o texto chinês clássico mais antigo. A legendária história de seu surgimento costuma ser datada até 3000 a.C.

Em pinyin, sistema de romanização reconhecido desde 1982 como padrão internacional pela Organização Internacional de Normalização, o nome do I Ching é Yì Jīng. O termo I Ging vem do sistema de romanização Lessing-Othmer, e é usado nos países de língua alemã fora do campo da Sinologia Moderna. Esse termo provém da tradução feita pelo sinólogo Richard Wilhelm. Outras designações existentes são Yi Ching, Yi King ou Yijing. A tradução de Wilhelm, crucial para a recepção mundial do livro, foi feita em 1950 ao inglês, com o título de “I Ching”. As primeiras edições dessa tradução, com o prefácio de Carl Gustav Jung, que ainda estão em bom estado, chegam a ser vendidas por mais de 500 Euros3em leilões. Devido ao seu grande êxito, a versão foi traduzida também a outros idiomas europeus. Em espanhol (da América do Sul), o nome é Y Ching ou I Ching; já na França, o nome popular é Yi Jing ou também Yi King.

A parte mais antiga do livro se chama Zhou Yi (Chou I, no sistema de romanização Wade-Giles), que significa “o Yi (mutação) da Dinastia Zhou”. O Zhou Yi é formado por 64 grupos de seis linhas contínuas ou quebradas (yáo). Tais grupos também são conhecidos como hexagramas. Na versão convencional, o Zhou Yi está dividido em dois livros. Um deles contém os primeiros 30 hexagramas e o segundo, os restantes (31 a 64). Cada hexagrama é apresentado seguindo um padrão único: há um símbolo ideográfico (guà xiàng), um nome (guà míng), uma frase com uma breve explicação (guà cí), como também um esclarecimento para cada uma das linhas (yáo cí).

O livro também passou a incluir, desde o século 2º a.C., uma série de textos anexados, conhecidos como “Dez Asas” (Shí Yì), ou também como “Comentário sobre o Yi” (Yì Zhùan), que consiste em dez documentos compostos por sete partes. Tradicionalmente, são atribuídos a Confúcio. Em algumas edições mais recentes, os primeiros dois comentários foram separados e colocados diretamente junto aos signos.

Originalmente, os signos provêm da prática oracular chinesa, mais especificamente do Oráculo de Varetas de Caule de Milefólio; já as frases, provêm da tradição proverbial e da prática ritual. Com a recepção erudita do I Ching, a partir do século 4º a.C., surgiram duas tradições de interpretação. A primeira, considerava a obra um manual de divinação (como Liu Mu e Shao Yong) e a segunda, procurava interpretá-la filosoficamente (como Zheng Xuan, Wang Bi e Han Kangbo), considerando o livro como uma fonte de idéias cosmológicas, filosóficas e políticas, uma ferramenta para comentários filosóficos mais aprofundados. A prática do Zhou Yi como livro de oráculo jamais perdeu o seu valor, e seu significado de “livro de sabedoria” também influiu a recepção europeia.

A tradição conta que os princípios do I Ching procedem dos “escolhidos” (sheng ren) – as divindades ancestrais do clan de Fu Xi (Fú Xī), o legendário primeiro imperador (por volta de 3000 a.C.), que descobriu os oito signos primordiais. Supõe-se que o rei Wen (Zhōu Wén wáng, século 11 a.C.) e seu filho Zhou (Zhōu Gōngdàn) foram responsáveis por atribuir instruções aos signos, que, nessa época, já eram 64.

Porém, antes da Dinastia Zhou teriam existido, também, outras versões escritas dos hexagramas, como Lian Shan Yi (Lián Shān Yì) e Gui Cang Yi (Gūi Cáng Yì), que, no entanto, foram perdidas.

Com a descoberta do Oráculo de Ossos da era Shang (2.000 a.C.), as pesquisas passaram a considerar que o I Ching surgiu a partir dessa prática de oráculo. Essa reinterpretação já havia sido feita na China, durante os últimos anos da era Qing (no final do século 19), mas foi considerada na Europa somente por volta de 1980.

A versão atual do texto do I Ching foi escrita e publicada em 700 d.C. sob o título de “Zhouyi zhengyi” (Zhōuyì zhèngyì). Durante muitos séculos, essa edição foi a versão de referência.

Para aproximadamente 10% dessa versão de referencia, há indícios históricos preservados desde o século 2º a.C., como a tradição epigráfica sobre as estelas de pedra (ver “Liste der Steinklassiker” em Wikipédia).

Em 1973, durante escavações num túmulo na área arqueológica de Mawangdui, próximo a Changsha, na província de Hunan, foi descoberto um manuscrito escrito em seda (aproximadamente do século 2º a.C.), que continha uma versão do I Ching diferente do texto de referência. Desde sua primeira publicação, em 1993, ficou conhecido pelo nome de “Manuscritos de Seda de Mawangdui” (Mǎ wáng duī Bó shū). Segundo Edward Shaughnessy, aproximadamente 12% do texto de Mawangdui (560 símbolos) difere-se da versão tradicional do I Ching.

Em 1977, durante escavações em Shuanggudui, na região de Fuyang, na província de Anhui, foram descobertas varetas de bambu com fragmentos do Zhou Yi (do século 2º a.C.). Desde então, com outras descobertas arqueológicas, apareceram outras versões ainda mais antigas ou da mesma época do Zhou Yi (os “Manuscritos de Bambu de Chu” e os “Manuscritos de Bambu de Guodian”).

Algumas interpretações históricas sugerem que há uma ligação do I Ching com o sistema de Ifá (assim como a tradição egípcia e, posteriormente, a grega, certamente tiveram ligações com os mistérios africanos). Ayo Salami comenta sobre esse ponto em seu livro titulado Teologia y tradición yorubá4:

Ifá provavelmente foi exportado à China por volta de 5300 anos atrás, possivelmente por meio de algum contato entre o povo chinês e o povo Fon, da República do Benim, na África Ocidental. Isso vai de acordo com as afirmações de Tony Smith. A partir de uma análise matemática do sistema divinatório chinês do I Ching, Smith reconheceu que esse sistema não tem apenas uma modulação similar a Ifá, mas é um produto direto da mesma:

“Como o I Ching se baseia em 64 pares de oito trigramas, sendo menos amplo que Ifá dos Fon, que se baseia em 256 pares de 16 tetragramas, o I Ching pode ter sido levado à China durante a civilização da Idade do Gelo, ou no princípio da civilização mundial, por barcos marinheiros oriundos da região africana da Sphinx de Giza.”

O que Tony Smith não sabia é que, na realidade, o povo Fon era composto por imigrantes da cidade de Ilé Ifè. Como eram escravos capturados nos campos da terra iorubá, eles deixaram suas raízes, mas se mantiveram ligados a sua religião, a seu deus, trazendo sua fé e suas crenças às novas terras para o reassentamento. No entanto, da mesma forma que o povo Lemba desaprendeu o idioma judaico e não consegue ler mais a Torá, o povo Fon não domina mais o idioma iorubá.

O I Ching tem muitas semelhanças com Ifá. O I Ching se parece muito com o Ikin, um instrumento sagrado de Ifá. De acordo com Tony Smith, a pronunciação “Fa” foi provavelmente introduzida ao mandarim depois de 1000 d.C., durante a Dinastia Sung. Antes disso, a pronunciação do termo começava com “P” em vez de “F”. Por exemplo: na Dinastia Tang, a pronunciação em mandarim era “Piuap”, que é parecida com a pronunciação nos idiomas do sul da China, como também com o cantonês. Smith continua sua afirmação dizendo:

“´É possível que a semelhança entre a pronunciação de “Fa” na China e na África seja resultado da influência africana na China, devido ao contato que esses povos tiveram por meio das viagens marítimas, por volta do ano 1000. Também é possível que a pronunciação chinesa “Fa” não tenha nenhuma relação com a África, e provenha de outra influência desse mesmo período – como o contato com os mongóis e outros grupos, ou algo completamente diferente.”

O I Ching parece ser um subconjunto da divinação de Ifá, no qual somente uma parte de Ifá constitui o princípio de toda a divinação. Essa deve ser a razão pela qual Tony Smith pensa que Ifá pode ter sido, na realidade, a base sobre a qual o I Ching se sustenta. Smith argumenta, por exemplo, que alguns dos Odus de Ifá constituem o núcleo da divinação do I Ching. Supõe-se que o I Ching seja um subgrupo de dois com 64 componentes, enquanto Ifá seja o conjunto maior, com 256 componentes.

Tony Smith também afirma que, por volta de 1119 a 1157 a.C., Hugo de Santalla (Noroeste da Espanha) escreveu “Geomancia Nova”, na qual faz referências tanto aos símbolos dos 16 tetragramas de Ifá, como também às 28 mansões lunares da astronomia chinesa.

“Na Europa, Ifá foi confundido com a Astrologia Ocidental, e por isso grande parte de seu significado foi perdido ou distorcido na Geomancia europeia dos 16 tetragramas. Ao ser introduzido na Europa, o I Ching foi tratado como um sistema independente, baseado em oito tetragramas, e não como um subsistema de 16 tetragramas. Visto que os europeus tinham acesso a um grande número de documentos e manuscritos chineses sobre o I Ching, enquanto Ifá se baseia sobretudo na tradição oral ou intuitiva e, dado que os europeus se basearam em grande medida na transmissão escrita do conhecimento, na Europa, os oito trigramas do I Ching (uma parte de Ifá) mantiveram seu significado original dos 16 tetragramas.”

Salami, que foi iniciado na tradição de Ifá, menciona o especialista Tony Smith, que se dedicou ao estudo da analogia do I Ching com os 64 aminoácidos e com o sistema de Ifá. Ele também faz observações sobre a longa história da troca cultural entre a Grécia e o Egito (Tales de Mileto, Pitágoras). Muitos filósofos se aventuraram em longas viagens ao Egito para entender os mistérios e as ciências. Alguns deles foram introduzidos a partes dessa cultura, e é bastante provável que muitos conceitos dos filósofos gregos sejam, na verdade, sabedoria africana, ou pelo menos se baseiem nos seus fundamentos. De uma forma análoga, pode-se presumir que a Ásia também tenha tido uma troca intensa com o Egito, ainda que não existam provas concretas escritas.

O fundamento filosófico do I Ching

No prefácio do livro I Ching, na versão atualizada de Richard Wilhelm, são enumerados os princípios filosóficos do I Ching:

1. O princípio da mutação. O Tai Gi é a viga da dualidade que divide o Universo em partes superior e inferior, direita e esquerda, traseira e dianteira. Assim surgem os opostos do Yin-Yang, do claro e do escuro. Tudo está sujeito à mutação. O Tao é a lei eterna, o sentido que subordina a mutação;

2. A doutrina. A visibilidade é a expressão de um mundo invisível. O I Ching comparte a ideia que Platão formulou sobre a realidade, como uma manifestação de uma verdade que jamais poderá ser vista de forma direta (Alegoria da Caverna). Os signos são entendidos como representações dos acontecimentos ao nascer;

3. O princípio das sentenças. Imagens representam palavras. Com as palavras, é possível interpretar; com isso, o ser humano tem liberdade para decidir como se comportar ou para mudar uma situação.

Certamente, poderia se discutir se esses princípios são suficientes, se realmente explicam todos os fundamentos básicos do I Ching. De qualquer modo, de forma direta ou indireta, eles abrangem e resumem grande parte dos ensinamentos filosóficos que serão explicados em detalhe mais adiante: a mística dos números, os arquétipos, a metafísica. Uma característica importante e especial do I Ching é que, como modelo do mundo, ele se baseia em um sistema dinâmico, com aspectos físicos e metafísicos, um modelo que se desenvolve da escuridão à luz, do nada a tudo. Esse modelo é uma representação da realidade e pode ser interpretado de tal forma.

Essencial para o sentido desse oráculo é o aspecto da mutação. O I Ching não é um modelo estático de representação de um futuro que não pode ser mudado. Tampouco é uma sentença, e sim uma representação de estruturas e energias que pode ser influenciada.

No seu comentário titulado Os Ensinamentos de Lao-Tzu5 , Richard Wilhelm descreve o contexto filosófico da seguinte forma, referindo-se aos trigramas como “signos primordiais” (Wilhelm: Lao-Tzu. Tao-te King, O Livro do Sentido e da Vida):

O mundo está em constante alternância e transformação. Tudo o que existe está, portanto, condenado a morrer, porque, embora sendo verdade que nascimento e morte são opostos, um e outro estão, não obstante, forçosamente ligados. Mas, ainda que tudo o que existe tenha de perecer, não há nisso nenhum motivo para dizer que “tudo é vão”, porque o próprio Livro das Mutações mostra igualmente que todas as transformações se realizam segundo leis estabelecidas. O Livro das Mutações contém a concepção de que a totalidade do mundo fenomenal está baseada no antagonismo polar das energias; o criativo e o receptivo, a unidade e a duplicidade, a luz e a sombra, o positivo e o negativo, o masculino e o feminino, são fenômenos das energias polarizadas que produzem toda alternância e transformação. Não se deve, porém, imaginar essas energias como princípios primordiais estáticos. O conceito do Livro das Mutações está longe de qualquer dualismo cósmico. Essas energias encontram-se, ao contrário, em contínua transformação. A unidade se divide e se converte em duplicidade, a duplicidade se une e torna a ser unidade. O criativo e o receptivo se unem e geram o mundo. Assim, Lao-Tzu também diz que o Um gera o Dois, o Dois gera o Três e este gera todas as coisas. No Livro das Mutações isso é representado pela união da linha indivisa do criativo com a linha dividida do receptivo que se combinam na formação dos oito signos primordiais de trigramas em três níveis, combinações estas de que é construído todo o mundo das constelações cronológicas possíveis.

A estrutura metafísica do I Ching

O primeiro passo – TAO

O primeiro passo do I Ching consiste no Tao. Tao é o Um absoluto, no qual o Universo existe indiferenciadamente. Ele corresponde ao zero do sistema de Pitágoras (ver o capítulo sobre a mística dos números). Tao é o vazio, a energia da atenção.

O segundo passo – ESSÊNCIA (o SER)

O segundo passo do I Ching corresponde ao número um de Pitágoras e representa a essência. A essência é a consciência absoluta, o divino omnipresente. O Tao flui, buscando a essência.

O terceiro passo – YIN e YANG

O terceiro passo consiste em uma diferenciação do Tao em Yin e Yang. Esse princípio binário, provavelmente surgido de um princípio simples de sim/não, representa os dois polos da escuridão e da luz. Yin e Yang correspondem ao numero dois de Pitágoras.

O Yin e o Yang possuem diferentes interpretações, como Terra/Céu, Feminino/Masculino, Receptivo/Criativo, puxando para baixo/empurrando para cima, movido passivamente/movido ativamente.

O Yin e o Yang estão ligados, eles são interdependentes e estão entrelaçados, há um fluxo permanente entre os dois polos. O ponto onde o Yin se transforma em Yang e vice-versa chama-se Te, que significa “vida”.

O quarto passo – TRINDADE (TRIGRAMA)

Este é o mundo dos trigramas, que gera o movimento. Eles classificam todas as funções em atuantes e passivas, e constituem a epítome da consciência. Esse passo corresponde ao número três de Pitágoras.

O quinto passo – REALIDADE (HEXAGRAMA)

Somente através da combinação dos trigramas é que surge a realidade, como uma interação entre interior e exterior, entre consciência e mundo. Assim, a realidade pode ser representada por meio de 64 modelos arquetípicos que, em conjunto, representam a mutação do ser humano e do Universo (a este respeito, ver também a parte sobre a analogia ao número quatro de Pitágoras).

O verso 42 de Tao Te King expressa perfeitamente a interpretação metafísica do I Ching como sistema de mutação:

O Tao gera a unidade.

A unidade gera a dualidade.

A dualidade gera a trindade.

A trindade gera todas as coisas.

Todas as coisas carregam o Yin nas costas

e o Yang nos braços

para que a grande harmonia seja alcançada. (Tao Te King, verso 42)

Mais adiante, no capítulo sobre o descobrimento da matemática por Pitágoras, veremos o mesmo desdobramento em quatro passos da potencialidade à realidade, numa versão até mais direta. Os heróis culturais chineses não tinham conhecimento da classificação funcional; para eles, bastava a regra trinitária com base na imagem exterior (como o Trovão), no motivo interior (como o Incitar), na relação numérica (as três linhas podem formar apenas oito trigramas) e, finalmente, seguindo a mesma lógica, na definição da ordem das linhas. Para a nossa vivência, perceber também significa ter uma consciência consagrada inteiramente à realidade sensorial. Sentir significa conhecer a realidade interior instintiva. Ambas as coisas podem ser unidas linguisticamente no pensar. Querer representa a perspectiva holística: empurrar para diante, de forma ativa, e abrir-se, de forma passiva, recebendo a fecundação.

Três conceitos do pensamento cósmico dos heróis culturais foram preservados, e estão por trás de todas as demais combinações: Wu Chi, a Potencialidade; Tai Chi, literalmente a Viga Mestra, o primeiro princípio da concretização; e, em terceiro lugar, a divisão deste último nos dois princípios opostos do Yang e Yin, originalmente, Luz e Sombra, posteriormente, Gerar e Receber, Masculino e Feminino, Forte e Fraco, cuja interação gera a diversidade do mundo. Seu efeito conjunto é representado pelo Círculo da Essência (Wesenskreis). O ponto Oeste, à esquerda do círculo, representa a transição da potencialidade à realidade; a potencialidade Wu Chi é vista como um princípio transcendental, algo prévio à concretização Tai Chi. A partir dela é que a energia da concretização flui na vida, com o arco inferior, para a direita, ganhando forma no ponto oposto, no Oeste do círculo.

Uma vez que a potencialidade Wu Chi conclui seu desdobramento espacial e ganha forma, começa o desdobramento temporal; ela retorna na forma de Yang ao ponto inicial, por meio do arco superior. O ponto Leste e o ponto Oeste ganham dois novos nomes: o espaço por onde a potencialidade flui na concretização chama-se Tao, e o ponto oposto, onde Yin se transforma em Yang, chama-se Te.

Tao é um conceito que aparece como sentido na tradução de Richard Wilhelm e, em outras obras, frequentemente como caminho, direção ou espírito. No entanto, sentido é a palavra que melhor capta o significado desse conceito chinês.

O ponto onde Yin se transforma em Yang chama-se Te, que significa vida