OS ORÁCULOS DE IFÁ - Tilo Plöger - E-Book

OS ORÁCULOS DE IFÁ E-Book

Tilo Plöger

0,0
5,99 €

-100%
Sammeln Sie Punkte in unserem Gutscheinprogramm und kaufen Sie E-Books und Hörbücher mit bis zu 100% Rabatt.
Mehr erfahren.
Beschreibung

O presente livro estrutura, explica e interpreta os dois mais importantes oráculos do Candomblé: O milenar Oráculo de Ifá e o Merindilogun, também chamado de Jogo de Búzios. O trabalho parte da filosofia hermética de Ifá e revela a qualidade metafísica do antigo oráculo. Simplificando a técnica complexa de jogo e abstraindo o trabalho divinatório, torna o antigo oráculo acessível a todas as pessoas interessadas no jogo e no culto. A partir de um profundo estudo das técnicas divinatórias da África, de Cuba e do Brasil, esse livro soma, resume, aprofunda, também, técnicas e conhecimentos do Merindilogun até hoje nunca revelados em livros a um público maior.

Das E-Book können Sie in Legimi-Apps oder einer beliebigen App lesen, die das folgende Format unterstützen:

EPUB
MOBI

Seitenzahl: 541

Veröffentlichungsjahr: 2017

Bewertungen
0,0
0
0
0
0
0
Mehr Informationen
Mehr Informationen
Legimi prüft nicht, ob Rezensionen von Nutzern stammen, die den betreffenden Titel tatsächlich gekauft oder gelesen/gehört haben. Wir entfernen aber gefälschte Rezensionen.



Tilo Plöger

Marcos de Jagum

OS ORÁCULOS DE IFÁ

A tradição oracular do Ifismo

Yorubá, Candomblé e Santeria

Título da edição original em alemão: Die Methaphysik von Ifá, das afrikanische I Ging

Copyright © 2017 Tilo Plöger

Ilustração: Maika Matthis

Tradução: Anaís Furtado

Capa e diagramação: Erik Kinting

Editora: Tredition GmbH, Hamburgo

O conteúdo desta obra está protegido por direitos de autor. Qualquer utilização, no todo ou em parte, exige a prévia autorização da editora e do autor. Isso se aplica especialmente à reprodução, eletrônica ou não, à tradução, à distribuição e à divulgação ao público.

Informação bibliográfica da Biblioteca Nacional Alemã:

A Biblioteca Nacional alemã registra esta publicação na Bibliografia Nacional alemã; dados bibliográficos detalhados estão disponíveis em: http://dnb.d-nb.de

SUMÁRIO

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

MITOLOGIA

O Ifismo

A origem do Universo

O surgimento do mundo material

O ser humano entre o mundo material e o mundo espiritual

A condução espiritual do ser humano

A energia Axé

A palavra, a respiração e a visão

OS ORÁCULOS DE IFÁ

A saga de Ifá

O surgimento do Merindilogun segundo a mitologia

Delimitação

Os instrumentos do oráculo

Procedimento

Princípios

O ANTIGO ORÁCULO DE IFÁ

Determinação dos caminhos (Odus)

Interpretação dos Odus

Determinação dos estados

Medidas de apoio – soluções

O MERINDILOGUN

Determinação dos caminhos (Odus)

Determinação das qualidades (Orixás)

Determinação dos estados em Ire / Ibi

Técnica de confirmação

Interpretação do oráculo

Medidas de apoio – soluções

INTERPRETANDO OS ODUS

OGBE

OYEKU

IWORI

ODI

IROSUN

OWONRIN

OBARA

OKANRAN

OGUNDA

OSA

IKA

OTURUPON

OTURA

IRETE

OSE

OFUN

INTERPRETANDO OS ORIXÁS

EUÁ

EXÚ

IANSÃ

IBEJI

LOGUNEDÉ

NANÃ

OBÁ

OGUM

OMOLU

OSSAIM

OXALÁ

OXÓSSI

OXUM

OXUMARÉ

XANGÔ

YEMANJÁ

NUMEROLOGIA COMPLEMENTAR

Numerologia I para a determinação do Orixá pessoal

Numerologia II para a compreensão da orientação e da conduta

Numerologia III para a compreensão da estrutura inicial

Numerologia IV para a compreensão dos caminhos

Numerologia V para a compreensão do mundo interior e do mundo exterior

PALAVRAS FINAIS

ANEXO

Orikis para invocar o oráculo

Plano de procedimento dos oráculos

Semelhanças entre Ifá e I Ching

LITERATURA

PREFÁCIO

O que é o princípio de toda a fé? Onde se situa o berço da espiritualidade? Onde está a origem comum de todas as tradições espirituais?

Os sinais espirituais mais antigos podem ser encontrados em pinturas de cavernas e em alguns objetos arqueológicos. São sinais de origem principalmente xamânica; sinais que têm, entre outros elementos, um forte foco nos três mundos espirituais (no mundo superior dos seres espirituais, no mundo intermediário dos seres humanos e no mundo inferior dos animais fortes e espíritos das plantas), além de uma forte ênfase no elemento feminino.

O xamanismo se baseia na forte comunhão entre o ser humano e a natureza e é uma tradição bastante animista. Com ele surgiram os primeiros sons vocais, a língua, os sinais e a escrita. O xamanismo é mais bem uma espiritualidade “sentida” do que uma espiritualidade “pensada conscientemente e refletida”. Nesse sentido, mais do que uma tradição cultural, ele é um passo evolucional, um fundamento.

O mundo árabe é considerado frequentemente como o berço da primeira “cultura” espiritual que formulou conscientemente princípios, rituais e relações. Zaratustra, o Sufismo antigo, a origem da escrita (aramaica): há muitos indícios de que, em algum lugar nessa região, houve a primeira estruturação sistemática da espiritualidade, ainda que de forma bastante mística e animista.

É quase certo que, tanto as tradições asiáticas e egípcias como também posteriormente a tradição europeia, recorreram a esse conhecimento, que deu origem às religiões do mundo. O comércio e a escrita foram com certeza os elementos decisivos na estruturação e na distribuição desse conhecimento espiritual antigo.

Menos retratado (e também menos conhecido) é que, ao mesmo tempo, ou talvez até anteriormente, havia na área da atual Nigéria uma tradição africana – a tradição de Iorubá – interagindo fortemente com as demais. Designamos essa tradição de Ifismo. O que a distingue essencialmente das outras tradições e por que sabe-se tão pouco sobre ela?

O Ifismo – precursor e lar espiritual do Candomblé – tem mais de 5.000 anos. Sua influência sobre as tradições espirituais asiáticas, egípcias e, posteriormente, também as gregas, é conhecida e foi em parte registrada em antigos manuscritos. Existem muitas semelhanças entre os “panteões”, os oráculos, os rituais e elementos arquetípicos, que reforçam a ideia de que houve um intercâmbio entre essas culturas no passado.

A cultura espiritual do Ifismo é basicamente uma tradição oral e tribal. Isso a diferencia bastante das demais tradições espirituais que surgiram posteriormente. Por esse motivo, essa cultura praticamente não foi escrita, e existem diferenças tanto em suas adaptações temporais como também em suas interpretações tribais (urbanas). O Ifismo se baseia numa língua que hoje, nos países escritores da História, é conhecida e usada somente em nichos muito específicos da ciência.

Uma cultura espiritual que não conta com uma tradição escrita corre perigo de desaparecer na atualidade. Ela se transforma no tempo e no espaço, já que é transmitida através de uma língua tão pouco conhecida no mundo, e passa despercebida, sendo muitas vezes mal interpretada. Se, por um lado, essa tradição teve muita ifluência nos princípios de nossa cultura, por outro lado ela também foi influenciada posteriormente por outras culturas. Assim, os fundamentos primordiais desse pensamento espiritual se diluem.

Essa tradição oral conseguiu adaptar continuamente o seu conteúdo em contextos específicos, atualizando-se assim para uma melhor compreensão. Devido a essas adaptações, muitas vezes se pensa que ela não é muito antiga, ou que provém de outras tradições. Isso não é verdade, dado que ela possui diversas características que indicam o contrário, o que já é reconhecido em pequenas partes da historiografia.

O Ifismo é uma tradição que zela pelos elementos do mistério. Somente os iniciados e escolhidos são introduzidos aos mistérios profundos dessa cultura. Uma pessoa que não cresceu nessa cultura e não foi escolhida pelos “deuses” não tem quase nenhuma chance de entender essa tradição mais além do que através de análises antropológicas, históricas ou visuais.

Em períodos mais recentes, essa tradição tribal foi levada através do comércio de escravos para o Brasil, Jamaica e também para Cuba, onde alguns de seus elementos individuais se reestruturaram, dando origem às atuais tradições do Candomblé (e em parte também da Umbanda), do Voodoo e da Santería.

No Brasil essa tradição desenvolveu-se amplamente, misturando-se com tradições xamânicas indígenas, com o espiritismo da França e da Europa, e em parte também com elementos cristãos.

A estrutura tribal se manteve intacta nas tradições: até hoje o que existe, tanto na África como nos terreiros brasileiros, são comunidades espirituais que não interagem entre si. O mesmo pode-se dizer da tradição oral (a forma escrita baseia-se em poucas fontes históricas, muitas vezes mal interpretadas e copiadas). Essas continuidades ocorrem ainda que as tradições tenham se desenvolvido diferentemente em cada país e tenham uma base linguística ligada às camadas sociais mais simples.

O Ifismo é desconhecido no mundo devido à sua complexidade, devido à base oral numa língua desconhecida (e nos seus diversos regionalismos), ao acesso restrito ao conhecimento (aberto somente para iniciados) e às raízes que têm nas camadas sociais mais carentes e no mundo oprimido pela colonização. Mesmo no Brasil, muitas tradições já foram perdidas. O jogo do Antigo Oráculo de Ifá é pouco praticado. Os livros no mercado que tratam do Ifismo são na maioria das vezes uma cópia, reinterpretação ou interpretação de poucas fontes da segunda metade do último século. Eles enfocam principalmente a técnica, a mitologia, os rituais e, algumas vezes, os princípios metafísicos.

A análise do conjunto da literatura brasileira sobre o Candomblé e a Umbanda aponta deficiências notáveis (salvando algumas louváveis exceções):

Se trata, na maioria das vezes, de material copiado. Quase todos os livros que conhecemos são praticamente uma cópia de poucas obras da equipe de Pierre Verger, Carybé, Bascom e Juana Elbein dos Santos. Esses autores contribuíram imensamente com o seu trabalho para a tradição brasileira do Candomblé. Apesar disso, se tratava de uma equipe fechada, de um grupo de trabalho e de amigos, com relações afetivas e ideias mútuas. Isso significa que muitas fontes de outros terreiros, de Cuba ou da África, não foram levadas em consideração.

Se trata de um material incompleto. O conhecimento não é acessível ao leitor, talvez por desconhecimento ou ocultismo dos escritores, ainda que esse último motivo seja desapropriado nos dias de hoje. Isso é o caso especialmente dos trabalhos sobre o oráculo. Não encontramos um só livro no mercado que reúna as diferentes técnicas e interpretações de forma abrangente e detalhada.

Se trata de um material com erros. Quando não se segue um fundamento espiritual, o perigo de desviar-se é maior. Quando feita sem um fundamento espiritual, a transmissão oral do conhecimento pode ser falha. Isso é o caso das análises feitas sobre as diferentes receitas de Ebós e outros rituais mágicos. Muitas vezes, essas análises não seguem nenhuma lógica ou conexão cultural e espiritual.

Se trata de um material com um fundamento falso. Essa é provavelmente a maior falha dos trabalhos sobre o Candomblé e a Umbanda. Talvez essa falha ocorra porque a língua e o conhecimento africano são transmitidos de uma forma bastante metafórica. Nessa cultura, os princípios e o sistema são transmitidos através de histórias e imagens. Isso permite que, por um lado, seja feita uma relação concreta, mas, por outro lado, abre caminho para muitos erros na falta de uma base “analítica”.

Cremos que a falta de uma base conceitual é um dos grandes motivos pelo qual as fantásticas tradições do Candomblé e da Umbanda continuem sendo desconhecidas e não sejam aceitas por grande parte do país e do mundo. A arbitrariedade e o ocultismo assustam as pessoas no contexto do mundo racional em que vivemos. Até mesmo o misticismo precisa de um fundamento. A espiritualidade é tanto uma experiência mística, como também uma ordem espiritual.

As tradições espirituais reunidas sob o conceito do Ifismo, provenientes da África, América do Sul e América Central, oferecem muitos elementos já perdidos nas regiões ocidentais. São elementos ou características que tem a ver com o que muitas pessoas do ocidente buscam no espiritualismo:

Experiência mística: as tradições do Ifismo são tradições fortemente vivenciadas e têm uma raiz mística. Elas não são somente uma crença, elas são uma experiência viva. A comunicação direta com o mundo espiritual está sempre presente. As entidades espirituais se manifestam nas tradições, na forma de incorporações, ou do “florescer”. Assim, elas são vistas por todas as pessoas, e por algumas até mesmo vivenciadas. O oráculo é um instrumento de comunicação e de ajuda, e é parte integral do dia a dia. Dessa forma, a fé é um conhecimento experienciado. A vida diária é inseparável da vida espiritual. O Ocidente vive o seu misticismo através de santos e aparições, ainda que a Igreja tenha sufocado muitas tradições antigas, como a contemplação e o ensinamento místico primordial. Já os integrantes da Umbanda e do Candomblé se comunicam “diariamente” com seus guias espirituais. Em algumas ocasiões, pode-se ter conversas profundas com alguns deles, como no caso das incorporações nos Pais de Santo, em mestres ou em participantes experientes. Essas experiências diárias tornam todas as dúvidas da fé em relação ao mundo espiritual supérfluas. A experiência mística conduz a certeza à fé.

Orientação pessoal concreta: as tradições são concretas, próximas à vida cotidiana e positivas em relação à vida. Elas desconhecem a Bíblia e não seguem um documento que institucionaliza a interpretação. Elas desconhecem o princípio da culpa. Elas desconhecem o inferno. Elas desconhecem o diabo. Elas desconhecem a missa. Elas não seguem normas e princípios escritos. Elas têm o objetivo de orientar as pessoas no âmbito do seu destino, da melhor maneira possível. Elas não são de forma alguma livre de valores – a diferença é que esses valores não estão enraizados dogmaticamente em lugar nenhum. Eles são vividos, comprovados diariamente e confirmados pelas próprias entidades espirituais. Eles são interpretados de forma inovadora e estão situados num contexto próximo à vida cotidiana. Ao mesmo tempo, essas tradições veem a vida de maneira positiva e são também muito alegres. Ao invés de missas, as pessoas dançam em conjunto, cozinham comidas comunitárias muito saudáveis e sem álcool. No lugar de sermões, são feitos diálogos pessoais com as entidades espirituais. As sugestões do oráculo e das entidades espirituais são bem concretas e não ficam só no plano abstrato. São feitas recomendações bem concretas, dirigidas a um futuro próximo.

Consagração como um todo: o Cristianismo (como também a ciência moderna e a indústria) baniu muitas dimensões espirituais durante muitos séculos. Os aspectos desagradáveis foram esquecidos, apagados ou proibidos. Isso ocorreu especialmente com os elementos da crença que não podiam ser controlados e que permitiam às pessoas um acesso direto a níveis espirituais, como por exemplo o misticismo – o misticismo como experiência vivida do nível espiritual, nível de cura através de energias de dimensões espirituais e medicina natural integral. O Candomblé, a Umbanda, a Santería e, pelo que sabemos, também a tradição do Voodoo, não excluem as conquistas das ciências modernas, mas sim trabalham com todos os instrumentos do conhecimento espiritual ao mesmo tempo, de forma integral e coerente. Elas incentivam as pessoas a viver com a responsabilidade de seus atos, com o poder da decisão, e não a ficar somente em conexão com os “deuses”. Nessa tradição, a fé e a ciência, a tradição e o progresso, a medicina e a cura espiritual são faces da mesma moeda.

Abertura ao progresso: como não há Bíblia nem igreja, não existe um dogma ou instância normativa na Terra. Somente o mundo espiritual decide sobre o desenvolvimento. Toda decisão relevante é “debatida” antes com o mundo espiritual. Portanto, essa forma de espiritualidade permanece muito aberta para novidades. Ela é uma tradição bastante tolerante, que vê o desenvolvimento de forma positiva – uma tradição que consegue viver com suas contradições internas, à face de um desenvolvimento aberto. É claro que existem variadas formas de interpretação, mas essas são discutidas, coexistem paralelamente, são “debatidas” com as entidades e situadas em um contexto atual. Tudo flui – até mesmo a espiritualidade, na sua estrutura interna e externa.

Liberdade de dogmas ou instituições: essa é uma tradição do Pai e do Filho, no sentido literal. O conhecimento e as energias são transmitidos diretamente através do mundo espiritual, indiretamente através do oráculo e de mensagens de entidades incorporadas, e também através dos Pais ou Mães de Santo (no Candomblé). Qualquer pessoa iniciada pode formar seu próprio grupo espiritual, se essa tarefa lhe for dada pelo mundo espiritual. Existe uma divisão de tarefas no grupo que é definida pelo mundo espiritual, mas não há uma hierarquia. Os grupos podem fazer qualquer troca e se juntam de maneira flexível em associações. A tradição vive com o perigo do abuso e da exploração, pois a falta de regras e controle resulta em que, em teoria, qualquer pessoa tem a liberdade de criar um grupo novo. As regras transmitidas não são controladas. A tradição supõe que a liberdade do desenvolvimento é mais importante do que a manutenção e o controle dos valores transmitidos. A tradição pressupõe que o mundo espiritual garante um equilíbrio qualitativo e a qualidade da seleção de forma automática. Segundo essa tradição, os grupos mal conduzidos e as pessoas que buscam a proximidade desses grupos possuem um carma próprio, um desenvolvimento específico. Todos se encontram no caminho da luz, e não há sombra – mas sim a falta de luz. A liberdade do desenvolvimento espiritual pessoal e coletivo está acima de tudo.

Tomamos a liberdade de reunir essas tradições de Iorubá – do Candomblé, da Umbanda, da Santería e do Voodoo – sob um conceito que as permeia: o Ifismo. Esse conceito deriva de Ifá, a figura central da comunicação entre o ser humano e o mundo espiritual.

Para nós, o Ifismo é a essência dessas culturas, a essência invariável (em grande medida) no espaço-tempo. Nosso primeiro passo neste livro é enfocar os fundamentos semelhantes dessas tradições, fundamentos identificados nas escassas fontes existentes e nos diversos contos mitológicos tradicionais, contos que variam no decorrer do tempo. Os princípios e os fundamentos são absolutos, mas os rituais, as lendas ou interpretações vividas são relativas ao espaço e ao tempo. Este é um livro escrito para o Candomblé, dentro de seu contexto. Apesar disso, a base do nosso trabalho está nos fundamentos de um conhecimento amplo e histórico que ultrapassa os limites do Candomblé.

Esforçamo-nos em alcançar na análise e na apresentação dessa tradição uma abstração e ao mesmo tempo também uma autenticidade. A abstração é alcançada através da integração das tradições com os princípios e elementos do pensamento espiritual universal, que são definíveis, identificáveis e coerentes. Esses elementos podem ser identificados e correlacionados em outras tradições, onde formam diferentes composições.

Empenhamo-nos em alcançar uma autenticidade, através de uma tradução muito fiel aos textos originais, e também através da união das escassas fontes existentes de qualidade. Ao mesmo tempo, nosso trabalho está baseado centralmente nas fontes de Babalorixás iniciados – pessoas que possuem um conhecimento profundo e contam com uma vasta experiência nessas tradições. A bibliografia na qual baseamos nosso trabalho encontrase no anexo deste livro. Tomamos a liberdade de corrigir, cortar ou explicar em todos os pontos que careciam de clareza, consistência ou abstração. A natureza dessas tradições implica, contudo, que todas as suas versões sejam incompletas e que existam diferentes interpretações e experiências (talvez sendo isso até uma ordem das coisas). Não podemos garantir a ausência de algumas inconsistências neste livro, que procuraremos melhorar no futuro. Essa cultura é bastante complexa e não permite que a ausência absoluta de erros seja uma meta possível a se alcançar.

Gostaríamos de deixar claro que esse trabalho não é uma análise histórica ou uma dissertação acadêmica e nem pretende ser. Somos Babalaô e Babalorixá iniciados – para nós, o que importa neste trabalho são as dimensões espirituais. Estamos convencidos de que o Ifismo (em especial o nosso Candomblé brasileiro) forma parte de uma rica tradição espiritual, da qual os fundamentos devem ser abertos a um público mais amplo. O Candomblé – como também as demais tradições do Ifismo – fornece muitos impulsos para o desenvolvimento espiritual, emocional e, em parte, também físico, para a análise e apoio no decorrer do caminho e desempenho do destino de cada um.

Qual é o objetivo deste livro?

A questão da comunicação entre o ser humano e o mundo espiritual está presente em toda tradição espiritual. Algumas tradições ensinam a meditação, algumas a contemplação e outras as orações. Algumas tradições utilizam a canalização e outras empregam a técnica das incorporações. Quase todas as tradições conhecem os jogos de divinação: os oráculos. O Tarô está presente no Cristianismo místico, o I Ching na Ásia e o Jogo de Búzios no Candomblé.

As tradições do Ifismo, incluindo o Candomblé, conhecem diversas formas de comunicação com o mundo espiritual. Existem os Xirês, que são danças rituais através das quais os Orixás se manifestam e há também os rituais dos Eguns, através dos quais se estabelece um contato com espíritos desencarnados. Na tradição complementária da Umbanda existem ainda as incorporações de espíritos ascensos, que se comunicam com as pessoas de diferentes formas, mas sempre com uma estrutura.

O oráculo continua sendo o instrumento mais importante do Ifismo e do Candomblé. Através dele, ou de sua forma antiga e tradicional dos versos de Ifá, manifestam-se todas as entidades espirituais. Dele provém toda a mitologia. Todos os fundamentos devem ser interpretados desde a perspectiva desse oráculo, pois nele estão afincadas as suas raízes.

O tema deste livro é o oráculo, justamente por ele ter um papel tão central nessa tradição. Nosso objetivo é explicar os seus fundamentos e, na medida do possível, mostrar diferentes formas de jogo e de interpretação. Neste trabalho, levamos em conta todas as fontes possíveis, a nível mundial, que estavam à nossa disposição.

O objetivo central deste livro é mostrar formas para o alcance da compreensão e da abstração do Antigo Oráculo de Ifá. Paralelamente, apresentamos de forma detalhada o Merindilogun – também conhecido como Jogo de Búzios – o jogo de divinação mais popular no Brasil.

É possível que o Antigo Oráculo de Ifá seja o oráculo mais antigo do mundo. Contudo, no Brasil ele praticamente desapareceu. Na forma tradicional, ele é muito complexo e difícil de jogar. Muitos creem que nesse jogo o que importa é a repetição de centenas de versos. Essa é uma ideia equivocada, que infelizmente perdura na crença popular. A interpretação metafísica do jogo e dos seus Odus (os caminhos do ser humano) foi praticamente esquecida, ou está à mercê de interpretações sem nenhum fundamento. Muitas vezes, as interpretações dos Odus são confundidas com as dos Orixás. Além disso, alguns dos poucos livros que tratam desse tema apresentam interpretações que praticamente não podem ser levadas à cabo.

Neste trabalho, trazemos à tona e esclarecemos os principais elementos do Ifismo e do Candomblé. Queremos tornar o Antigo Oráculo de Ifá acessível para todos os públicos novamente, através da abstração de seu jogo. Queremos mostrar uma maneira rápida e relativamente fácil de entender este oráculo, uma maneira que dispensa a leitura de todos os seus versos. Os versos são considerados neste trabalho somente de uma forma geral, mas podem ser aprofundados pelo leitor.

Existem diversos livros sobre o Merindilogun e o Jogo de Búzios no mercado, alguns deles sensatos e bem escritos, na nossa opinião. Queremos ampliar esse conhecimento em torno de três aspectos importantes. Em primeiro lugar, explicamos como esse oráculo pode ser jogado em combinação com o Antigo Oráculo de Ifá. Assim, a gama de possibilidades é ampliada. Além disso, nossa interpretação metafísica permite que o leitor compreenda o oráculo num sentido mais abstrato. Por último, mostramos várias técnicas de interpretação que jamais foram reunidas dessa forma. Com isso, tanto o jogador principiante, como também o experiente, terão novas opções para realizar o jogo do oráculo e chegar a novas interpretações.

* * *

Quem somos, os autores que reúnem o conhecimento neste livro?

Eu, Tilo Plöger, sou brasileiro. Minha família emigrou com visões empreendedoras da Alemanha para o Brasil em 1880. Depois de completar o ensino médio, fui para a Alemanha, onde estudei Química e também Administração de Empresas. Durante muitos anos, fui diretor de empresas internacionais, ligadas especialmente a conceitos alternativos para “Saúde e Beleza”, cosméticos naturais, medicina natural etc. Paralelamente, ainda que vivendo num mundo de negócios orientado pelo objetivismo e centrado nas pessoas, estudei durante mais de 25 anos as faces espirituais e científicas de diversas tradições espirituais e fui até mesmo iniciado em algumas delas. Sou mestre de Reiki, concluí os ensinos xamânicos de Alberto Villoldo, me dediquei à alquimia, aos esoterismos e às escolas de mistério do ocidente, ao tantra, ao trabalho dos chacras e meridianos, à medicina da informação, ao trabalho das luzes e à filosofia quântica, entre outros ensinamentos. Meu objetivo central sempre foi a conexão de experiências espirituais e científicas. Encontrei meu lar espiritual e meu destino no Candomblé e na Umbanda. Fui iniciado e formado nessas duas tradições, como também na tradição do Oráculo de Ifá (na medida do possível e com suas limitações) por meu amigo Pai Marcos de Jagum, tradição restringida somente aos homens.

Eu, Marcos de Jagum fui iniciado no culto Nagô aos 1 ano de idade, iniciei minha caminhada na Umbanda aos 10 anos e me tornei babalorixá aos 18 anos na nação de Keto , com a raiz da Casa Branca, Bahia, Salvador. Inicie meu Ilê Axé há quase 20 anos e desde então a pesquisa e o estudo da lei , das tradições e do culto afro, foram minhas características principais e pela qual dediquei toda a vida.

Nosso objetivo nessa jornada foi ampliar e aprofundar o conhecimento da raiz do oráculo de Ifá. Sabemos que nossa caminho apenas começou e que o presente resultado nada mais é do que uma primeira síntese.

Desejamos a todos os leitores muita sabedoria e experiências que iluminem um pouco mais a existência e a ação do amanhã.

Tilo Plöger e Marcos de Jagum, 2016

Para questões pessoais e aprofundamentos, o leitor poderá contatar-nos da seguinte maneira:

Fraternitade Umbandista

Irmãos Unidos na Fé

Casa do Cabolco Pena Branca

Estrada da ilha de Guaratiba, 673

Caminho da Augusta casa 13

Ilha de Guaratiba-Rio de Janeiro

Brasil CEP 23020_230

Tel +55 (21) 964573524

INTRODUÇÃO

A questão do sentido da vida sempre ocupou a mente do ser humano, desde o princípio de sua existência. Alguns existencialistas alegam que o sentido da vida é aquele que o ser humano designa a si mesmo. Eles não creem em um mundo espiritual que influi na vida das pessoas proporcionando-lhes um sentido mais elevado. Já quase todas as tradições milenares desse mundo creem que não há uma só folha que caia de uma árvore sem estar num contexto mais amplo. Elas creem que a vida é muito mais do que a experiência visível e direta. Elas creem num mundo espiritual paralelo e superior. Elas creem em uma vida espiritual antes, durante e depois da existência material nessa vida.

Para as pessoas espirituais, que creem na existência de algo maior que elas, surge a questão de como encontrar um meio de acesso a essa dimensão superior. Somente através do conhecimento desse mundo espiritual é possível encontrar as respostas para as perguntas elementares da vida: as grandes questões do destino, da essência pessoal, da razão dos problemas concretos, de ajuda na escolha de decisões. Todas as perguntas e problemas desembocam em duas questões principais:

1. Quem sou eu? Essa é a questão da essência do ser humano e de suas qualidades interiores.

2. Aonde vou? Essa é a questão dos caminhos externos que o ser humano percorre.

As grandes tradições espirituais, incluindo o Ifismo, creem que essas duas dimensões são os aspectos centrais da vida. Elas acreditam que a grande tarefa da vida é encontrar a harmonia entre aquilo que o ser humano é e o caminho que ele percorre. Essa harmonia ajuda o ser humano a alcançar a felicidade, a realizar-se e a manter sua saúde.

Ao longo dos milênios, surgiram diversas técnicas e filosofias para a comunicação com o mundo espiritual. O caminho interior é alcançado através da meditação e a contemplação. O caminho exterior é alcançado a partir da interpretação espiritual do mundo exterior (de uma maneira racional e analítica como na astrologia e numerologia, ou empática e animista como no xamanismo), ou através da comunicação direta com o mundo espiritual. Existem técnicas para o caminho da comunicação direta, como por exemplo a canalização e as incorporações. As diversas técnicas de divinação – os oráculos – são outra forma de alcançar o mesmo caminho.

Todas as grandes tradições têm oráculos, como o I Ching da Ásia e o Tarô da Europa, exemplos bastante conhecidos. A vantagem do oráculo é que se trata de um conhecimento aberto à aprendizagem e à transmissão. Além disso, ele fornece informações, conclusões e medidas de apoio diferenciadas.

Na Europa, os oráculos são reduzidos à mera profecia. Entretanto, esse não é o objetivo principal deles – num sentido estrito, um oráculo nem mesmo poderia alcançar esse objetivo. Os oráculos são instrumentos para a análise de uma situação (de uma perspectiva espiritual), são instrumentos para a busca de conselhos. Os oráculos indicam opções de escolha para nossas decisões, identificam qualidades e revelam se alguns aspectos de nossas vidas estão em harmonia ou não. Eles indicam ainda se o acesso às qualidades do interior está disponível ou bloqueado. A previsão de acontecimentos concretos é um efeito secundário que deve ser tomada com precaução, pois o futuro nunca está totalmente certo. Uma situação específica identificada em uma consulta ao oráculo pode parecer definida. Entretanto, essa situação pode não estar totalmente decidida, pois as pessoas envolvidas podem atuar de diferentes maneiras. As situações que acontecerão com certeza – aquelas que não podem mais ser mudadas por ninguém – não são mostradas pelo mundo espiritual. Nestes casos, o oráculo se revela sobre essas questões de uma forma fechada, o que significa: “tudo já foi dito” e “não há nada mais a fazer ou aprender”.

O Antigo Oráculo de Ifá surgiu há mais ou menos 5.000 anos. Muitos historiadores creem que este oráculo e sua tradição tiveram uma grande influência sobre a mitologia egípcia e, portanto, também sobre a mitologia europeia que surgiu posteriormente. Alguns historiadores sugerem até mesmo que o I Ching é uma forma simplificada do oráculo africano (uma breve descrição do I Ching está no anexo deste livro). Outros creem até mesmo que o termo faraó venha de Fa Ro, que significa “descendente de Ifá” – a figura central do Ifismo. Em muitas das escrituras gregas existem referências aos “padres negros”. Sabe-se que os gregos aprenderam e formaram sua espiritualidade durantes diversas viagens que fizeram ao Egito. Somente pelo fato de ser uma fonte da mitologia ocidental, já vale a pena conhecer o Antigo Oráculo de Ifá mais de perto.

O Antigo Oráculo de Ifá é muito mais do que apenas um jogo de divinação. Ele é o núcleo de todo o sistema espiritual do Ifismo. Este oráculo traz em si a forma espiritual de ver o mundo. Ele não é como o Tarô ou o I Ching, que são um instrumento a mais dentro de uma tradição. Ele é o canal de comunicação entre o ser humano e os planos espirituais. Através deste oráculo desenvolveu-se toda a mitologia. O jogo de divinação é o ponto de partida de todas as questões cruciais – sobre o trabalho, a família, a saúde, o amor, os rituais ou a organização – e todas elas são conferidas com o oráculo. Por esse motivo, ele é muito abrangente, podendo ser aplicado de forma bastante detalhada. Tanto sua análise, como também suas respostas, estão sempre em conexão com as forças espirituais. Dessa forma, garante-se uma aplicação na vida real que está em sintonia com o mundo espiritual superior.

Por que o Antigo Oráculo de Ifá e sua vertente mais atual – o Merindilogun, jogado no Brasil e em Cuba – são tão desconhecidos? Isso se deve basicamente aos seguintes motivos:

• À sua complexidade. O Antigo Oráculo de Ifá é muito difícil de se jogar, e para dominar esse oráculo é necessário seguir um treinamento durante anos. Isso deve-se à interpretação dos lances, que é feita através do canto de centenas, milhares de versos, exigindo daquele que o interpreta um conhecimento amplo de todos os versos e interpretações.

• À duração. As práticas tradicionais do oráculo duram muitas horas. Isso não se encaixa na visão atual moderna, que favorece as análises rápidas.

• À língua. A língua original do oráculo é iorubá, que é pouco dominada no mundo e praticamente já desapareceu no Brasil e em Cuba.

• Ao sistema oral. O sistema tradicional é restringido somente a homens iniciados. Praticamente não existe uma tradição escrita. As interpretações são transmitidas oralmente há milhares de anos, e somente aos iniciados nessa tradição. Durante esse tempo, houve muitas adaptações e mudanças regionais.

• Ao contexto social. Essa tradição está ancorada na camada social mais carente da população, com pouco acesso à educação, tanto na Nigéria como também nos “satélites” Brasil e Cuba.

• À exclusão religiosa, que ocorreu especialmente através da colonização feita pelos jesuítas. Essa tradição foi considerada uma cultura primitiva e acusada propositalmente de ser um culto à magia e ao diabo.

Somente nos últimos 30 a 50 anos alguns estudiosos reconheceram o enorme potencial e a riqueza do oráculo e de sua tradição espiritual. Algumas dessas pessoas foram iniciadas, entrevistaram seus mestres e escreveram algumas obras, algumas mais completas do que outras. Assim, existem no ocidente fontes em línguas diferentes, em parte infelizmente já esgotadas. Em geral, constata-se que o antigo sistema de Ifá – em sua forma tradicional – é jogado atualmente somente em algumas partes da Nigéria. A sua versão mais simples e rápida – o Merindilogun – prevaleceu em Cuba e no Brasil, onde é conhecido também como Jogo de Búzios, o nome das conchas usadas neste jogo.

A grande vantagem do Antigo Oráculo de Ifá é que ele orienta as pessoas nos seus caminhos e faz isso de maneira bastante diferenciada. Enquanto o forte do Merindilogun está em sua análise rápida e precisa, o Antigo Oráculo de Ifá aprofunda muito mais os caminhos e princípios do destino. De forma simplificada, pode-se dizer que o Merindilogun enfoca as polaridades de situações, tratando as tensões como fontes de problemas e de decisões importantes que afetam nossas vidas no percorrer dos caminhos do destino. O Antigo Oráculo de Ifá, por sua vez, revela as opções de decisão, as estruturas da vida. Os dois sistemas se complementam dessa forma, podendo ser utilizados juntos.

Para que o Antigo Oráculo de Ifá possa ser jogado no mundo ocidental, é necessário simplificá-lo, sem que sua essência se perca no caminho. Isso só é possível através da abstração, que é o objetivo desse livro. Pois os milhares de versos, mesmo sendo algumas vezes tão concretos, se refletem em princípios arquetípicos. A interpretação concreta é sempre uma forma de enquadramento cultural que visa alcançar uma melhor comunicação e reprodução. Ela é o resultado da experiência de cada caso específico.

Este livro enfoca a apresentação e interpretação dos princípios que estão por trás de todos os rituais e lances do jogo. Com eles, o oráculo se torna mais fácil, mas rápido e pode ser aplicado de maneira universal, sem ser alterado. O leitor pode consultar seus versos líricos quando queira. Alguns versos, de fontes em inglês, português e espanhol, estão anexados neste livro. Também conhecidos como Itans, esses versos podem ajudar na concretização de temas específicos. Entretanto, essa consulta não é necessária para que o leitor alcance uma interpretação diferenciada do oráculo.

Apresentamos nesta obra os princípios do Merindilogun, completando algumas vezes com exemplos e experiências. A mitologia é, para essa versão mais recente do oráculo, o que os versos cantados são para o Antigo Oráculo de Ifá. Aquele que pretender jogar esse oráculo de forma abrangente deve conhecer essa mitologia, pois ela é indispensável para o alcance de uma interpretação diferenciada. A mitologia é descrita em outro livro de nossa autoria.

Qualquer pessoa pode manejar o oráculo? A resposta é sim e não. Na tradição espiritual, somente as pessoas iniciadas podem manejar esse jogo. O Merindilogun pode ser jogado tanto por homens como por mulheres. O Antigo Oráculo de Ifá, somente por homens. Enquanto o Merindilogun exige somente a iniciação na tradição, o Antigo Oráculo de Ifá é restringido a poucas pessoas que seguem uma iniciação especial.

Na prática, o Merindilogun é jogado pelos Babalorixás e Yalorixás – os Pais e Mães dos Orixás, guardiões e zeladores dos deuses. Para eles, o domínio do jogo do oráculo é essencial, pois eles necessitam consultar as vontades dos Orixás em todos os rituais. O Antigo Oráculo de Ifá é jogado somente na África, por Babalaôs – os Pais dos segredos. Eles não são automaticamente Babalorixás, pelo contrário, na maioria das vezes seus papéis são diferentes.

São necessárias três condições para que uma pessoa domine o jogo do oráculo: sabedoria, paixão e iniciação. Isso é válido para todos os oráculos deste mundo, e se na prática isso não ocorre, é porque há uma desnaturalização do desenvolvimento espiritual.

Pessoalmente, cremos que essa tríade é indispensável para o alcance de uma conexão confiável com o mundo espiritual e uma interpretação correta do oráculo. Entretanto, deve-se diferenciar o uso do oráculo na esfera privada. Nossas sugestões pessoais são:

• Sem iniciação, não se deve utilizar o oráculo para consultas fora do círculo mais próximo da família e amigos. Não se deve, de maneira alguma, comercializar o seu uso.

• Sem iniciação, não se deve utilizar o oráculo para finalidades terapêuticas. Esse é um dos motivos pelo qual não aprofundamos as formas e implementações rituais de magia neste livro. Esse tema é reservado para Babalaôs, Babalorixás e Yalorixás iniciados, pois não há ritual sem invocação de entidades espirituais.

• Não se deve utilizar o oráculo para temas muito “complicados” e existenciais como doença, crianças, magia, entre outros exemplos.

O oráculo pode ser jogado para a compreensão geral de situações, ou da própria personalidade, entre outros exemplos.

MITOLOGIA

O Ifismo

O que significa Ifismo? Como já afirmamos no prólogo, Ifismo é um neologismo, um conceito criado recentemente. Ele abrange todas as semelhanças das tradições espirituais africanas de Iorubá que surgiram há mais ou menos 5.000 anos na área que ocupa hoje a Nigéria – tradições que formaram a base da espiritualidade árabe, egípcia e africana. Com o tempo, essas tradições foram diferenciando-se e misturando-se com outras correntes, mas suas influências podem ser identificadas até hoje na cultura europeia e até mesmo na asiática, como por exemplo no I Ching. Com o tráfico de escravos, essa cultura se difundiu posteriormente no Brasil, em Cuba e na Jamaica, onde ganharam formas próprias. O Ifismo abrange sobretudo os versos do Antigo Oráculo de Ifá, transmitidos oralmente, versos que são os fundamentos de todas as interpretações. Entende-se por Ifismo mais o conteúdo do que os rituais, mais o abstrato do que o concreto. Os rituais concretos se transformam no espaço-tempo. No entanto, seus princípios abstratos perduram quase intactos e são o fundamento de todas os rituais, em diferentes contextos culturais e históricos.

As manifestações culturais do Ifismo são consideradas, em sentido restrito, como religiões, e o Ifismo é o conceito chave para diversas comunidades religiosas originadas em Iorubá (na atual Nigéria), que cultuam as mesmas estruturas e entidades espirituais. O princípio que une essas diferentes religiões do mundo, com milhares de seguidores, é o princípio de Ifá – da comunicação com o mundo espiritual através do oráculo e do acesso às respostas através dos versos cantados. As religiões do Ifismo situadas fora da África, como o Candomblé no Brasil, a Santería em Cuba e o Voodoo na Jamaica, cumprem todos os requisitos de uma religião mundial: contam com milhões de seguidores, seguem crenças claras, têm um conceito de deus estável, partilham os mesmos princípios e rituais, entre outros. Mesmo assim, elas continuam sendo desconhecidas e incompreendidas no mundo.

Qual é o objetivo do Ifismo? Qual é o objetivo do Candomblé? A tradição do Ifismo quer conduzir o ser humano ao seu equilíbrio espiritual, à harmonia consigo mesmo, com o seu ambiente e, dessa forma, com o seu destino. De modo geral, o Ifismo vê o ser humano, bem como todos os demais seres com alma, dentro um processo de desenvolvimento que parte da escuridão (da falta de luz) rumo à luz.

Nesta tradição, o sentido principal da vida é tornar-se uma “boa pessoa”. Traduzido ao pé da letra, ser uma boa pessoa significa “chegar ao mundo para abençoar a Terra”. Uma boa pessoa é aquela que está em ressonância, em comunicação e em troca profunda com o seu ambiente. Para isso acontecer, ela não pode depender de influências do exterior (daquilo que o mundo exterior pensa sobre ela) e sua orientação interior deve estar livre – livre de seus medos interiores e projeções, livre de seus próprios “demônios” (Elenini).

Primeiramente, o Ifismo é uma tradição que deseja manter o ser humano no seu caminho predestinado, e que o apóia nesse caminho com força, liberdade, clareza e orientação. Nesse sentido, o Antigo Oráculo de Ifá é o principal instrumento para analisar os caminhos e as forças pessoais. Os rituais (mágicos) sugeridos pelo oráculo têm como objetivo restabelecer o equilíbrio interior e exterior do ser humano no percorrer do seu caminho. Isso é alcançado especialmente através da troca de energias materiais e espirituais (desprendimento, fortalecimento, enfraquecimento), de acordo com princípios mágicos.

Que oportunidades oferece o Ifismo para as pessoas ocidentais? Essa tradição oferece, de forma prática, um instrumento de sabedoria muito antigo que se manteve ao longo do tempo: o Antigo Oráculo de Ifá. Ao contrário dos conhecidos oráculos alquimistas da Europa, o Antigo Oráculo de Ifá é muito detalhado e oferece medidas de apoio concretas durante a análise. Apreciamos muito esse princípio de divinação pelo fato de ele estar ligado à espiritualidade e ser conduzido pelas próprias entidades espirituais. São elas quem respondem através do oráculo e que ajudam nos rituais mágicos; são elas quem zelam pelo equilíbrio de energia. Se trata de um sistema bastante circular e em conexão.

Além disso, o Ifismo é um modelo bem elaborado de autoconhecimento. Essa tradição oferece muitas opções para a reflexão e ação do ser humano no seu caminho pessoal da espiritualidade e da realização.

Para aqueles que buscam e apreciam as experiências místicas, o Ifismo é um excelente ponto de partida. Aqueles que têm a oportunidade de participar nas danças, ou até mesmo de falar com entidades incorporadas, certamente não esquecerão essa experiência e alcançarão uma diferente visão do mundo espiritual.

Por fim, o Ifismo possui uma mitologia extraordinária. Suas estórias (parecidas com as conhecidas lendas do Olimpo) transmitem conhecimentos herméticos que podem ou não ser compreendidos e interpretados dentro de contextos mais profundos. Suas lendas despertam o prazer da leitura.

A origem do Universo

O Ifismo é uma tradição monoteísta. No princípio só havia Olodumaré. Ele é o deus todo-poderoso, onipresente e que tudo sabe. Ele se manifesta em três formas: em Olorun, Eledumaré e Olofi. Olorun é o Senhor do Céu, associado ao Sol (Olo significa reinar). Eledumaré é o grande criador do Universo, do mundo e da vida. Olofi é o mediador entre o nível espiritual (Orun, o Céu) e o nível material (Ayé, a Terra). Essas três formas de manifestação são muitas vezes vistas como sinônimos ou diferentes nomes para Olodumaré, o que não é exatamente correto.

Olodumaré é o criador e fundador de tudo, foi ele quem separou o Céu e a Terra. Ele participa diretamente na criação da ordem espiritual e dá tarefas às entidades por ele criadas, especialmente aos Orixás e Odus. Os Orixás criaram em conjunto a Terra e a vida terrestre (Olodumaré é quem, pessoalmente, deu a vida ao ser humano). Eles coordenam a comunicação entre as pessoas e o mundo espiritual, cuidam da realização do carma etc. Os Odus, também conhecidos como profetas e arcanjos, definem os caminhos que as pessoas percorrem. Olodumaré é quem mantém a união do mundo material com o espiritual e delimita as fronteiras de cada um deles. Ele não interfere na vida. Suas tarefas são limitadas à estruturação dos princípios elementares, enquanto a realização das tarefas é passada às entidades por ele criadas.

O mundo se desenvolve a partir de um único deus. Há certas semelhanças entre essa tradição e as demais grandes religiões do mundo no que diz respeito aos simbolismos e a algumas passagens da História da Criação. O que muda são somente os simbolismos e a forma de transmissão de ideias. No primeiro passo do autodesenvolvimento de deus, surge a polaridade (dualidade) na forma de um deus-pai e uma deusa-mãe, em uma situação de igualdade. Na mitologia grega, os deuses são Zeus e Hera, já na mitologia africana de Iorubá, eles são Oxalá e Oduduá – os primeiros Orixás.

Há muito mal-entendido sobre esse casal mitológico. Os princípios espirituais foram transmitidos na forma de orações cantadas (Orikis) e versos sagrados cantados (Itans), deixando muito espaço para interpretações. Contudo, levando em consideração os fundamentos herméticos dessa tradição (como a dualidade, por exemplo), a linha de interpretação se torna bastante clara. Oxalá é a primeira e suprema entidade do “panteão” dos Orixás. Ele representa o lado masculino arquetípico da História da Criação, ou seja, do mundo espiritual. Oduduá é o lado feminino de deus e representa o surgimento do mundo material, de uma forma arquetípica. As lutas na mitologia entre Oduduá e Oxalá devem ser interpretadas perante esse contexto.

Todos os Orixás surgem com Oxalá no nível espiritual (ao mesmo tempo ou posteriormente). Os Orixás não são deuses, ainda que isso seja dito na língua popular. Infelizmente essa ideia equivocada consta em muitos livros. No Ifismo há somente um deus: Olodumaré. Os Orixás são qualidades do mundo espiritual. Eles se refletem no mundo material. São as qualidades que definem e constituem o ser humano. São qualidades arquetípicas, de forma análoga aos “panteões” dos gregos, romanos e egípcios. São características como o amor, a ordem, o êxito, a mudança, a comunicação, a plenitude e muitas outras. Os Orixás possuem não só as características propriamente ditas, mas também suas polaridades como inversão, ou seja, “a falta delas”.

Os Orixás não abrangem somente qualidades. Eles também abrangem as relações entre essas qualidades, no que diz respeito às áreas de tensão entre elas, complementações e assim por diante. As cooperações e discussões entre os Orixás são narradas detalhadamente nos contos mitológicos.

Os Orixás também têm propriedades materiais e correspondem a objetos, símbolos, plantas e animais – elementos que têm um papel importante nas práticas rituais de magia, cura, dança e oração. Essas correspondências são analogias e não devem ser tomadas de maneira absoluta ou ao pé da letra. Elas variam bastante nas diferentes regiões e épocas – variações que são permitidas, contanto que os princípios sejam preservados. O Orixá Oxalá, por exemplo, corresponde sempre à cor branca. Rituais com muitas cores, com álcool ou muito sangue animal, desviam dos princípios e não correspondem às qualidades desse Orixá.

As características, correspondências e relações dos os Orixás são transmitidas na mitologia através dos Itans. Itans são versos sagrados, revelados pelo oráculo. Interpretá-los é tarefa reservada somente ao sacerdote, o Babalaô (pai do mistério). Os Itans são contos breves, versos que revelam as características, relações e instruções concretas dos Orixás. Eles parecem um pouco com os contos de fada ou contos mitológicos dos deuses germânicos, gregos e egípcios, por serem contos que transmitem fundamentos arquetípicos, valores universais e herméticos. Eles também apresentam classificações concretas de objetos, cores, plantas, elementos e animais para rituais.

Os 256 Odus se manifestam nos Itans. Os Odus formam parte da segunda categoria de entidades depois dos Orixás, entidades que preenchem o plano sem carma do mundo espiritual. Os Odus são também conhecidos como profetas ou arcanjos. Eles representam as estruturas de energia definidas do Universo, os caminhos definidos. Diferentemente das qualidades dos Orixás, as estruturas dos Odus não dependem do ser humano e do plano material. Elas não existem dentro da pessoa, mas têm influência sobre a pessoa e formam a base na qual as qualidades pessoais se desenvolvem e evoluem. De uma forma metafórica, os Odus são a estrada e o ser humano é o carro. Nesse contexto, o oráculo é a navegação – é ele quem mostra as posições, os engarrafamentos e os trajetos.

De uma forma resumida, o sistema fundamental do Ifismo está baseado na conexão entre o desdobramento e o movimento, através da dualidade e da trindade. Este é o papel simbólico e arquetípico dos Orixás e dos Odus – os “deuses” e os “caminhos”. A essência do ser humano e do seu caminho predestinado é definida e retratada nessas duas dimensões (Figuras 1 e 2).

Toda situação e toda pergunta podem ser atribuídas à interação entre os Orixás e os Odus (qualidades e estruturas). A consulta e o trabalho com o oráculo seguem essa lógica. Através do oráculo, os caminhos relevantes e as qualidades que os definem são revelados. Isso significa que os Odus e Orixás respondem pessoalmente no oráculo. O médium é quem faz a consulta – ele atende ao mundo espiritual. Se durante a análise da situação houver a suspeita da necessidade de uma intervenção, as respostas a essas questões podem ser encontradas nos milhares de versos (Itans) nos quais os Odus se manifestam, que devem ser interpretados pelo Babalaô.

Existem 16 Odus que definem as estruturas de energia. Eles são codificados em linhas e são considerados como o princípio de dualidade mais antigo da humanidade. É muito provável que eles constituam o fundamento do I Ching chinês – os hexagramas podem ser vistos como uma simplificação do sistema de Ifá. Os 16 Odus aparecem sempre em par. Eles podem aparecer duplicados e em reforço (Odu Mejis) ou também cruzados em uma interação (dois Odus diferentes). Juntos, eles formam o total de 256 Odus, que são o resultado do cálculo de todas as interações possíveis (16x16 combinações). Na literatura e na tradição oral, os 16 Odus principais (em relação consigo mesmo) são chamados de profetas e seus cruzamentos são chamado de discípulos.

Na América do Sul e em Cuba, a mitologia dos Odus tem um papel menor do que a mitologia dos Orixás. As pessoas têm acesso a essa mitologia especialmente através das interpretações do oráculo. Os Odus praticamente não são vistos como entidades próprias, não sendo portanto incorporados nos rituais. Porém, o conhecimento da mitologia dos Odus é essencial para a compreensão do oráculo e da estrutura espiritual. Esse papel “menor” dos Odus, em comparação ao papel dos Orixás, se reflete no uso do oráculo. O Antigo Oráculo de Ifá tradicional tem ênfase nos 256 Odus e trabalha todas as suas nuances e resultados. O novo oráculo Merindilogun enfoca somente os 16 Odus principais e os Orixás que neles se manifestam. No Brasil, praticamente apenas o Merindilogun é jogado, o que demonstra que há um enfoque nas controvérsias da vida. A questão do sentido da vida – o forte do Antigo Oráculo de Ifá – não é o objetivo central do Merindilogun. A questão central que ele trata é o contexto de problemas concretos.

Existem 16 Orixás principais, de forma similar à estrutura numerológica dos 16 Odus principais. A dedução dos Orixás tem uma lógica mais problemática e menos clara, ao contrário da dedução dos Odus, que é hermeticamente coerente e inquestionável (matematicamente, essa dedução é uma potência de 2: 2-4-16-256, e representa um ciclo fechado).

Todo “panteão”, todo desdobramento do plano espiritual, deve corresponder (desde uma lógica hermética) a uma potência de dois. Contudo, na África existem inúmeros nomes para um mesmo ou semelhante Orixá. Existem também diferenças nas ênfases da conotação mitológica e nas homenagens feitas. Isso parece ser um resultado da transmissão oral e das variações regionais.

Com o passar do tempo, estabeleceu-se uma estrutura predominante de 16 Orixás, devido à necessidade cultural que surgiu da união de diferentes tradições e também pela necessidade hermética de restabelecer a lógica da potência de dois no oráculo. Essa necessidade cultural é resultado do sistema da escravatura, que misturou diferentes etnias e separou famílias propositalmente. As comunidades que surgiram dessa união tiveram que harmonizar suas tradições individuais. Hoje em dia, outros Orixás são vistos como “qualidades” desses 16 Orixás principais, eles “respondem” através dos Orixás principais de acordo com seus aspectos. Por isso, existem muitos Orixás com um segundo nome, ou “sobrenomes”. Oxalá, por exemplo, é também conhecido como Oxaguian, e Nanã Buruku tem um nome duplo.

Nossa descrição da mitologia e dos instrumentos do Ifismo é feita respeitando a consistência e a história dessa tradição. Fizemos o possível para reunir elementos coerentes – provenientes de uma fonte única, de uma região e, quando possível, das tradições mais antigas – que se mantiveram na prática e que foram consultados com Babalaôs. Tomamos a liberdade de completar ou corrigir pontualmente os elementos que apresentavam alguma inconsistência hermética. Como não existem espiritualidades fechadas e toda espiritualidade é também um desenvolvimento, não há contradição na existência de diferentes formas de interpretar e praticar técnicas. Até porque, segundo o princípio da ressonância, o plano espiritual sempre responde através do sistema pelo qual ele é chamado. Por isso, diferentes sistemas de oráculo podem funcionar para uma mesma pergunta – cada oráculo dentro de seu sistema e com seu perfil próprio (e sua interpretação específica).

É importante que toda escolha, mudança, ou desenvolvimento seja consistente. Se um leitor desejar aplicar o oráculo e basear-se também em outros livros ou em suas experiências pessoais, sugerimos que comprove se o sistema usado é coerente – completo, correto e sem contradições. Caso contrário, o sistema não funcionará de forma clara. Além disso, sugerimos que o leitor recorra a conceitos que tenham se mantido na prática, conceitos escritos por pessoas experientes. No anexo deste livro, há uma seleção de autores experientes, competentes e profissionais, com intenções íntegras (alguns de língua estrangeira). Pessoalmente, seguimos o princípio de que se deve usar somente os sistemas dos quais os fundamentos sejam compreendidos. Outra opção seria negligente. Neste livro, tomamos os 16 Orixás como fundamento de todas as práticas do oráculo. Muitos dos demais Orixás encontrados na literatura se refletem nas qualidades e aspectos desses 16 Orixás. Muitas vezes, os Orixás principais “tomam poder” de algumas pessoas durante uma dança ritual – isso se há intenção por parte dos Orixás, e somente alguns Orixás determinados por pessoa, dependendo da constelação individual de cada um. Esse processo não é uma incorporação no sentido estrito, porque na maioria das vezes as pessoas ainda se mantêm conscientes. No Candomblé brasileiro, isso se chama “florescer” – os Orixás florescem no indivíduo através da dança. Isso é mais uma manifestação do que uma incorporação, e vai de acordo com a ideia principal do Ifismo, de que os Orixás são parte das pessoas e que essas, por sua vez, experienciam uma correspondência espiritual através deles. Eles não são entidades distantes que nos comandam, mas sim nossa própria essência com uma correspondência espiritual. O ser humano é composto por elementos dessas qualidades e os Orixás reúnem todas as qualidades do Universo.

Além dos 16 Orixás, existem também alguns Orixás que têm um papel especial no Universo, mas que não devem ser vistos como aspectos do ser humano, como por exemplo Orunmilá-Ifá, a entidade da comunicação espiritual e divinação. Existem entidades que simbolizam determinadas características geográficas – montanhas, rios, entre outras – ou aspectos do mundo material e espiritual como a terra, o céu etc. Para facilitar, optamos por não aprofundar essas entidades neste livro, mas o leitor deve saber que elas existem. Esses Orixás não interferem no oráculo (a não ser Ifá – o Senhor do jogo e dos mistérios) e não se manifestam nas danças rituais.

Abaixo do plano sem carma dos Orixás e dos Odus, encontra-se o plano do carma. Todas as entidades que residem nesse plano estão submetidas ao princípio cármico da causa e efeito e da troca e do movimento. Seus poderes e desenvolvimento dependem da existência do carma. No plano do carma atuam especialmente os espíritos desencarnados, que não encarnam mais, mas que estão envolvidos no processo do carma (esse processo também ocorre no plano espiritual não encarnado). Neste plano atuam também muitas entidades que não aprofundaremos neste livro (como Devas, por exemplo). Este é o plano dos mestres ascensos, que tem influência sobre o mundo material de diferentes formas. Esse também é o plano dos espíritos desencarnados, os Eguns, que ainda se encontram no processo de encarnação (Figura 3).

No Ifismo tradicional da África, existe um culto bastante forte e diferenciado aos Eguns, aos ancestrais. É interessante ver que nesse culto se encontram muitos elementos do Espiritismo, porém os elementos têm uma estrutura mais clara do que em uma sessão espírita. Através desses cultos, os Eguns são evocados e podem incorporar e tomar o controle temporal da consciência e dos movimentos de certas pessoas na dança, de maneira similar ao Espiritismo. Porém, isso ocorre somente quando eles ainda se encontram no mundo intermediário. Antepassados ou sacerdotes desencarnados, já honrados e com um ciclo completo, não incorporam mais.

A tradição da Umbanda se desenvolveu no Brasil a partir dessa tradição dos Eguns e em sincretismo com o Espiritismo europeu, em especial da França. Essa tradição se difere fortemente do Candomblé, mas é complementária a este. Por este motivo, a definimos neste livro como parte do Ifismo. O Candomblé é uma evolução dos rituais dos Eguns e da estruturação do plano espiritual cármico. Segundo essa tradição, as entidades (mestres) desencarnadas – aquelas que não encarnam mais, porém que se encontram no processo cármico – se conectam ordenadamente, cada qual com seu papel, formando entidades individuais ou coletivas, que apoiam a realização do carma.

As entidades da Umbanda atuam em duas estruturas. Elas estão sob o comando de Exu, o Orixá da comunicação e da troca cármica. Uma estrutura atua no contexto da roda medicinal e transforma as estruturas de energia. Outra estrutura forma uma trindade e gera movimento (Figura 4).

A primeira estrutura deve ser compreendida dentro do contexto do fluxo de energia na roda medicinal. As entidades ocupam sete de oito possíveis pontos e conduzem a energia a partir deles. O oitavo ponto é mantido livre, porque ele tem como objetivo deixar a energia entrar ou sair. Todos os temas, todas as questões e todas as tarefas atravessam todos os sete pontos de transformação. Depois de cada passo tomado, é feito um controle para ver se a tarefa foi cumprida com êxito. Somente depois desse controle é que a tarefa é liberada para o próximo passo. Caso contrário, ela é enviada de volta para atravessar o processo novamente.

Cada ponto (cada braço) está sob o controle de um dos sete Orixás do “panteão” dos 16 Orixás (os demais influem pouco nesse processo). Existem, portanto, sete arquétipos dessas entidades atuando de forma ordenada a partir das hierarquias (7x7) que formam. Cada entidade corresponde a um dos 16 Orixás e está sob o comando permanente de um Orixá principal em cada ponto cardeal, e sob o controle e comando de Exu (o Orixá que implementa o carma). As entidades com nomes estranhos à primeira vista, como Tranca-Ruas, 7 Encruzilhadas, Marabô, Pinga-Fogo, Gira-Mundo, Tiriri e Pomba-Gira, assumem tarefas cármicas especiais, que retratamos em detalhe no livro sobre a mitologia, no capítulo sobre os mestres ascensos. Essas entidades estão à disposição das pessoas nas incorporações, onde respondem às suas perguntas e atuam de forma mágica (no sentido de atuar na realidade através da “manipulação” de energia no plano espiritual).

A segunda estrutura atua na forma de um triângulo (trindade) que produz movimento. Três entidades atuam sobre essa estrutura: o Preto Velho, o Caboclo e a Criança. Eles representam as energias elementares da humildade, da simplicidade e da pureza e são responsáveis pela implementação ritual de tarefas importantes do Candomblé (atuando como mestres, instrutores, protetores e purificadores de rituais).

A tradição da Umbanda tem uma estrutura em parte similar à estrutura do Espiritismo, apesar deste último invocar “qualquer” entidade ou pessoa morta. A Umbanda é também uma evolução da tradição dos Eguns, pois suas entidades submetem-se a uma ordem espiritual e a um trabalho sistemático. Na Umbanda existem muitos Eguns – com ou sem ciclos de encarnação. As entidades que não encarnam mais se estruturam em diferentes tradições, onde assumem tarefas específicas. Em relação ao Ifismo, é importante entender que as entidades da Umbanda já descritas se dedicam à ordenação e ao trabalho consistente das energias. A exclusividade não é uma necessidade – muito pelo contrário, a Umbanda faz referência à existência de muitos outros sistemas nos quais atuam entidades. Entretanto, deve-se evitar a mistura de elementos da tradição espírita no ritual.

Por que é necessário conhecer a estrutura cósmica do Ifismo? Ela constitui o fundamento para interpretação do oráculo (Orixás e Odus) e, portanto, para a compreensão da nossa existência. Ela é a base da magia ritual – não há magia ou cura feita sem o plano espiritual.

Essa breve introdução da estrutura e das funções do mundo espiritual (ou mundos espirituais) pode ser aprofundada em detalhe nos outros livros de nossa autoria, dedicados também a essa tradição. Partindo do conhecimento da estrutura do mundo espiritual, surge a questão de como e com que propósito o Universo se desenvolveu e como a vida surgiu segundo a mitologia.

O surgimento do mundo material

Depois do surgimento das estruturas e qualidades, ou seja, do plano dos Odus e Orixás, o mundo espiritual se separa do mundo material. Isso ocorre especialmente com a criação do carma. Sob o encargo de Olodumaré, surge o Céu e a Terra: Orun e Ayé. Nesse contexto, os Orixás são encarregados de criar o mundo e a vida. Eles cumprem essa tarefa em duas fases e posteriormente se afastam da Terra, deixando de ter influência direta sobre os acontecimentos do mundo.

A separação do Céu e da Terra tem semelhanças à estória do pecado original: o ser humano experiencia os limites do espaço e do tempo e é “crucificado” na matéria ao longo de sua vida terrestre. Mais além da vida terrestre, os espíritos continuam a experienciar a restrição do carma. Entretanto, eles não estão limitados ao plano material. O carma, a matéria e o rompimento da comunicação e influência direta do mundo espiritual são elementos que o “pecado original” de diferentes tradições espirituais têm em comum (o véu de Ísis da mitologia egípcia, por exemplo).

O recuo dos deuses tem semelhanças com o desenvolvimento dos deuses gregos na mitologia, que num primeiro passo interferem diretamente nos acontecimentos, mas depois vão se retirando pouco a pouco, devolvendo a liberdade de escolha às pessoas. Com isso, os deuses estabelecem uma nova forma de comunicação com o mundo espiritual, feita sobretudo através do oráculo.

Com a criação de Ayé, surge o carma. Nesse plano há uma troca constante de energias. Nada surge sem equilíbrio. Surgem os princípios que já conhecemos, que são transmitidos mitologicamente de geração em geração, muitas vezes através de contos e mitos. Surgem quatro elementos: a terra, os animais, as plantas e o ser humano. Surge, sobretudo, a vida, que está em conexão com o mundo espiritual através da respiração (e também de outras formas). Surge a palavra, como origem de toda manifestação material.

O plano do carma é ocupado por muitas formas de vida (entidades), no sentido material ou não. Formas materiais e não-materiais estão conectadas através da vida e da morte, da criação e da destruição. No plano espiritual atuam as diferentes estruturas dos espíritos desencarnados, dos mestres ascensos, entre outras. Neste plano atuam também outros seres espirituais que, desde o plano espiritual, influem sobre o plano material.

Os mundos estão conectados e se condicionam mutuamente. Eles coexistem e estão juntos lado a lado, permeando-se. Não há forma de comunicar-se diretamente com o mundo espiritual da perspectiva do ser humano, com sua restrição do tempo, do espaço e da matéria. As entidades do mundo espiritual não interferem na vida diretamente, elas devem ser primeiramente “ativadas” (através da oração). A comunicação com os planos espirituais pode ser feita através da canalização, das incorporações (Espiritismo), das técnicas de divinação (oráculos) e da conexão pessoal de cada um. A influência desses planos, cada um com sua repercussão específica sobre a realidade material, ocorre através do princípio da troca da magia (da transformação do material através do espiritual e vice-versa).