A libertação da natureza - Daniel Stosiek - E-Book

A libertação da natureza E-Book

Daniel Stosiek

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Beschreibung

Este livro considera a natureza como sujeito e o mundo humano como parte da natureza. Desde tal pressuposto desenvolve uma nova economia política.

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Índice

Dedicatória para uma amiga desconhecida

Prefácio

Objetivo da pesquisa

Metodologia e caminho do trabalho presente

1. A natureza considerada como sujeito(s

)

1.1. Falar da subjetividade sem ser ‘subjetivo’

1.2. Critérios da subjetividade

1.3. Argumentos a favor da subjetividade da natureza em termos de alteridade

1.4. Mais argumentos em favor da subjetividade da natureza

A) A ciência natural se torna encantadora

B) Sobre o cavalo que não corre contra o muro

...

C) ... o que fui ensinado a

não ver

1.5. Os afetos básicos segundo Espinoza

1.6. Afinidade entre ser humano e natureza

2. Dialética da Alteridade

2.1. Ser humano e natureza

2.2. Alteridade

3. Desde a matéria até as relações sociais humanas – Guerra, exploração, libertação, paz

3.1. Importância da teoria do valor

3.2. Uma aporia na teoria de Karl Marx – a ‘mãe abstrata’

3.3. Começando com a matéria – Autopoiesis e meio ambiente, sistema e exterioridade

3.4. Energia, trabalho e vida

3.5. Relações contraditórias

3.6. Autopoiesis exteriorizada

3.7. Contexto universal de vida e a sua coisificação

3.8. A invenção da troca e da dádiva baseadas no princípioda equivalência – Ou “sexo e dinheiro”

4. A perda recorrente da equivalência e a sua inversão como início do capitalismo

4.1. Aparência de equivalência e os três fatores da produção

4.2. Valor econômico e preço

4.3. O trabalho da natureza como fonte da mais-valia

4.4. Inversão ou a fonte geradora do valor do capital do Norte global

4.5. Subsunção formal e real do trabalho da natureza sob o capital

4.6. A inversão do desejo humano e a inversão da economia

4.7. O reino da necessidade e o reino da liberdade

4.8. A colonialidade da natureza

A) Poder – conatus – energia potencial

B) Poder e propriedade

C) Valor econômico como “lote” e “tijolo” do poder político delegado

D) Colonialidade da reprodução

4.9. Equivalente quantitativo e qualitativo

5. Caminhos rumo à igualdade - uma pista da libertação

Referências

Dedicatória para uma amiga desconhecida

Dedico este livro a uma pessoa "anônima" que conheci no Fórum Social Mundial em março de 2018, em Salvador.

Algumas vezes, um encontro pode resultar numa revelação dialógica.

Vou descrever este encontro – com todas as limitações possíveis das lembranças incompletas.

Encontrei essa pessoa enquanto eu contemplava uma árvore, que me parecia especialmente interessante. Ela ficou admirada pelo meu jeito de olhar e começamos a conversar. Após um tempo, ela me perguntou o que significava liberdade, e eu lhe respondi. Depois, lhe fiz a mesma pergunta, e ela me contou uma experiência daquele dia; ela estava almoçando e pensando que liberdade era isso; comer, tomar um café e talvez mais tarde uma cerveja; mas de repente chegarem muitas pessoas, que participavam de uma marcha em homenagem à Marielle Franco, militante feminista que lutou em prol dos direitos das mulheres negras e tinha sido brutalmente assassinada no dia anterior.

Essas pessoas que agora lutavam por justiça social, tão ameaçada e violentada nos nossos dias, se aproximaram do lugar onde a pessoa "anônima" estava sentada, ela perdeu o apetite e ficou muito irritada.

Logo depois, ela viu um homem de camiseta com uma frase estampada: "Pela liberdade da água" e foi aí, que ela começou a descobrir uma outra dimensão da liberdade.

Continuando a nossa conversa, formulamos e descobrimos juntos que a liberdade requer duas dimensões; a liberdade de si mesmo e a liberdade de todos os seres humanos, seres vivos, da natureza, da terra e da água. Temos que entender que o compromisso com uma, não pode se dar sem a luta pela outra. Com isso, não apenas reinventamos o que Marx e Engels afirmaram e que outrora tinha me parecido uma tautologia; que "no lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e antagonismos de classes surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos", além disso, revelamos uma nova dimensão grandiosa; a da alteridade (ou Tu-Nós) da natureza. Compreendemos de vez – modificando as palavras de Pablo Neruda – "que existe uma comunicação de desconhecido a desconhecido, entre natureza, terra, água, espíritos e ser humano, que havia uma solicitude, uma petição e uma resposta mesmo nas mais longínquas e afastadas solidões deste mundo".

Prefácio

Como cheguei a este tema?

Cresci na Alemanha Oriental, em um Estado que se dedicava oficialmente ao marxismo. Assim, aprendi alguns termos do pensamento marxista já na escola, ainda que de maneira distorcida, porque servia a legitimar um Estado autoritário governado por elites, mas contudo realizava uma parte dos direitos humanos sociais melhor do que na Europa ocidental.

Após o fracasso histórico do sistema socialista estatal, foi um movimento de indígenas no México, Chiapas, que revitalizou a partir do ano 1994 a práxis e o discurso revolucionários em escala mundial.

Enquanto isso, no último ano da Alemanha Oriental, na época da queda do muro, para deslegitimar a tentativa de buscar outra alternativa ao capitalismo, muitos se perguntavam: "Por que inventar a bicicleta uma segunda vez?"

E foi em Chiapas, México que o movimento Zapatista teve a coragem de reinventar a bicicleta e abordar o tema de uma nova sociedade numa práxis reflexiva.

Desde o ano 2000 convivi várias vezes em comunidad es indígenas na região do Chiapas como observador de direitos humanos. Também trabalhei duas vezes em ONGs de direitos humanos, uma vez 2002/03 no Chile, Valdivia (CODEPU) e a outra vez 2004 no México, Cuernavaca (CIDHM), e me concentrei no tema dos direitos humanos coletivos das populações indígenas, no Chile dos Mapuche, e no México, na região dos indígenas da língua náuatle.

Durante esses trabalhos voluntários fiz análises sobre conceitos de "desenvolvimento", de qualidade de vida e de direitos, partindo da perspectiva dos indígenas, realizei entrevistas com vários representantes – para comparar estes conceitos com o desenvolvimento que acontece atualmente. Essas atividades incitaram o tema da minha tese de doutorado.

Entrevistei mais de 100 indígenas entre Chile e México sobre os seus conceitos de desenvolvimento, qualidade de vida, e sobre as suas experiências de contato com a sociedade europeia ou "branca". Fiz essas entrevistas no ano de 2007.

A partir de 2012 pesquisei sobre temas relacionados aos povos indígenas no Brasil, realizando várias entrevistas com indivíduos dessas comunidades.

Nessas conversas, entrevistas e amizades, o tema da relação espiritual com a natureza, com a terra, as plantas e os animais, foi citado várias vezes. Algumas pessoas mais reflexivas enfatizaram que o valor de todos os produtos vem também da natureza.

Eu tinha aprendido que segundo Marx, o valor vem do trabalho humano, e que a mais-valia que constitui o capital, provém da exploração do trabalho do ser humano, e que por isso seria necessário revolucionar a sociedade para colocar o ser humano com o seu trabalho na sua dignidade plena e acabar assim, com toda a exploração.

Comecei a pensar que os indígenas poderiam ter razão quando diziam que o valor provém da natureza. Em 2017, num encontro de povos indígenas em Guarulhos, presenciei a seguinte cena: um líder indígena mostrou um objeto feito de uma planta e destacou que aquilo era o produto do "trabalho da natureza".

Lembrei de um outro episódio de alguns anos atrás; durante uma celebração de Natal com vários integrantes da comunidade Umutina-Balatiponé em São Carlos, em 2012, um deles indicou uma construção de madeira e opinou que Karl Marx não tinha razão quando afirmou que um objeto como este era produto de trabalho humano usando recursos naturais, mas que ele como indígena via sempre a árvore viva nesta construção.

Esse momento me serviu como outro incentivo para investigar de que maneira o valor era resultado não só do trabalho humano, mas também da natureza. Estudei mais detalhadamente a teoria de Marx. Um autor que conhece bem a teoria de Marx, Wolfgang Jantzen, me deu muitas referências sobre teorias da física, da auto-organização da matéria, do sentido social e outros.

Me debrucei sobre esses e outros trabalhos científicos, também estudei livros de uma releitura de Marx de autores do Sul global, como Enrique Dussel e Boaventura de Sousa Santos. Assim no ano de 2014 publiquei um livro em alemão sobre o trabalho da natureza unido ao trabalho humano como fonte do valor e da mais-valia no capitalismo (Stosiek 2014).

Esse livro é resultado de uma pesquisa na Universidade Metodista de São Paulo que realizei entre maio de 2016 e o começo de 2018, na área das ciências da religião, com o acompanhamento muito enriquecedor do meu professor anfitrião Claudio de Oliveira Ribeiro, a quem agradeço a possibilidade de ter realizado essa pesquisa.

Mas como indiquei inicialmente, estou trabalhando com o tema desse livro há mais anos, especialmente desde 2013.

Considerando o trabalho da natureza, a natureza como sujeito, a contradição entre o trabalho vivo (da natureza e do ser humano) e o capital morto e a coisificação de tudo o que vive no capital, muitos termos das ciências sociais e da teologia se modificam nos seus significados; como o poder, o racismo, a espiritualidade, o fetishe; e parece que ficou também entendido que todas as coordenadas se transformam, de modo comparável, como as coordenadas de um mapa mudam quando não se considera mais a Terra plana, mas como redonda. Porém, com certeza vivemos na época da liberdade de opinião, e a ninguém está proibido de ainda acreditar que a Terra é plana.

Daniel Stosiek, março de 2018, São Bernardo do Campo

Objetivo da pesquisa

O objetivo deste trabalho é pesquisar traços essenciais da relação entre heterotrofia e ressonância, ou em palavras mais simples, entre as dimensões econômica e espiritual em práticas sociais, partindo de costumes da troca e da dádiva em povos indígenas, comparando esses elementos também na sociedade atualmente dominante e globalizada – a qual se pode caracterizar como culturalmente híbrida e ao mesmo tempo hegemonizada pelo sistema ocidental. Este tema leva à pergunta; o que é o valor, ou seja, a medida da comparação entre os diferentes atos e as coisas, que se utiliza nas práticas tanto da dádiva e da troca como da compra e da venda. O valor que desempenha um papel econômico e ao mesmo tempo social, deve ter um aspecto material e também um aspecto de relações e valorações sociais, e por conseguinte espiritual.

Metodologia e caminho do trabalho presente

Para abordar este tema complexo, utilizo uma metodologia dupla: por um lado, suponho – aprendendo de povos indígenas – que não só o ser humano mas também a natureza tem qualidade do subjetivo. Por outro lado, aplico certas ciências naturais não só à natureza fora do âmbito estritamente humano, mas também ao ser humano enquanto humano. Utilizo enfoques da física, da biologia e da auto-organização da matéria que reinterpretam as ciências naturais no sentido de superar a dicotomia entre matéria e espírito.

Estou procedendo em três passos. Começo com o tema da subjetividade da natureza. Depois esboço a dialética da alteridade, ou seja uma dialética a qual se compreende de baixo para cima, do particular para o genérico, do subjetivo para o social, em que a dialética do ser humano e da sua história seja interligada com uma dialética da natureza.

Enfim se desdobra o tema da economia e do sentido social, partindo do emprego de ciências naturais, sobretudo de teorias da auto-organização da matéria ou da autopoiesis e aplicando estas ciências de modo não-reducionista. Nãoreducionismo significa aqui que considero a matéria sem esquecer que se trata da mesma realidade a qual é espírito, e que se contempla estágios de desenvolvimento rudimentares sem perder de vista que esses contêm as sementes ou o potencial do desdobramento mais avançado e complexo. Significa afirmar que a Terra é redonda sem negar que ela é muito mais do que uma bola. Ou como Karl Marx formulou: “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior, não pode [...] ser compreendida senão quando se conhece a forma superior.” (Marx 2008, p. 264)

1. A natureza considerada como sujeito(s)

Se poderia argumentar que a tentativa de justificar ou fundamentar a ideia de que a natureza tem qualidade do subjetivo já relativiza e questiona a sua dignidade, de modo análogo como Adorno falou uma vez sobre o tema dos direitos humanos.1 Isto seria válido tanto perante os povos indígenas quanto as palavras de Leonardo Boff que fala do grito da natureza (Boff 2003, p. 52) e inclui a ecologia como tema essencial da teologia da libertação.

Mas mesmo assim, estrategicamente vale a pena lutar com meios da ciência. Como Pierre Bourdieu escreveu: "Se você deseja triunfar sobre um matemático, é preciso fazê-lo matematicamente pela demonstração ou refutação.

Evidentemente, há sempre a possibilidade de que o soldado romano corte a cabeça de um matemático, mas isso é um "erro de categoria", diriam os filósofos." (Bourdieu 2003, p. 32)

1.1. Falar da subjetividade sem ser ‘subjetivo’

Como se pode falar cientificamente da subjetividade?

Ou seja, sem ser "subjetivo"? Não significa ser científico o mesmo que ser objetivo?

Tanto, segundo a minha experiência cotidiana, quanto no que diz respeito às pesquisas realizadas na Alemanha, nos Países Baixos e Grã-Bretanha (Faber/Manstetten 2006 p.

126, Van den Born, De Groot, Lenders 2006), muitas pessoas, na vida do dia a dia, opinariam que evidentemente as plantas e animais têm alma ou mesmo espírito. Mas este assunto se torna mais complicado quando se trata das ciências tanto naturais quanto humanas e sociais. Nessas ciências, a natureza é geralmente vista como objeto enquanto só o ser humano tem a fama de ser sujeito.

O geólogo russo Vladimir Ivanovich Vernadsky, em seu livro A Biosfera (1926), comparou a geosfera com a biosfera e a noosfera, sendo a última a esfera da vida do ser humano que se caracteriza pela ciência e o trabalho, sendo que estas três esferas formam parte de um só desenvolvimento, em que a biosfera é parte da geosfera, mas a mudou ao mesmo tempo, e a noosfera é parte da biosfera e consequentemente também da geosfera, transformando-as contudo. Na visão do autor, a noosfera, isto é a totalidade da humanidade, é um momento espontâneo e objetivo da geosfera.

Mas é possível e necessário considerar uma coesão ou uma analogia entre ser humano e natureza não só em termos da objetividade, mas também da subjetividade.

Na primeira das teses sobre Feuerbach, Karl Marx escreve:

A principal insuficiência de todo o materialismo até os nossos dias -o de Feuerbach incluído - é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente.

O que Marx pensou no tocante à sociedade humana, eu vou considerando também em relação ao conjunto da relação entre ser humano e natureza.

Primeiro quero esboçar alguns critérios mínimos ou básicos do significado de subjetividade, para depois descrever alguns argumentos a favor, para poder considerar a natureza como sujeito(s).

1.2. Critérios da subjetividade

A subjetividade, sendo ela uma realidade interior, implica:

a) a vulnerabilidade e a capacidade de sentir alegria e dor [aspecto passivo],

b) a intencionalidade, isto significa, ainda que seja rudimentar, poder atuar com propósito [aspecto ativo].

Vistos os aspectos ativo e passivo juntos, a subjetividade resulta ser passional.

c) A subjetividade implica ainda um sentido de temporalidade, isto é poder aprender, obter memória e ter a habilidade de espelhação-em-adiante (em alemã: vorauseilende Widerspiegelung [Jantzen 2007]) da realidade, em outras palavras formar uma expectativa sobre o futuro provável. Significa desenvolver uma ideia interna sobre o mundo, uma imaginação antecipada sobre o futuro.

Por exemplo, a habilidade de espelhação-em-adiante da realidade, que sempre vai junto com a memória –e seja ela rudimentária –, já acontece, quando uma bactéria segue um gradiente de quantidade crescente de uma substância nutritiva (açucar, o qual para ela significa alimento [Jantzen 2015, p. 232]). Isto implica, por conseguinte, uma noção de temporalidade irreversível, em que se distingue entre passado e futuro.

Além disso, para falar de subjetividade razoavelmente e sem se tornar "subjetivo" no mal sentido da palavra, se precisa d) da alteridade, da relação com a subjetividade do outro/da outra, e) e do plural, então das subjetividades em diversidade.

1.3. Argumentos a favor da subjetividade da natureza em termos de alteridade

Segundo Lev Vigotsky, é necessário investigar cientificamente a subjetividade além da introspecção, por conseguinte a subjetividade de outros sujeitos, como por exemplo na psicologia de crianças, feita por adultos, que nunca poderão experimentar o que uma criança vivenciou,

ou como os historiadores e geólogos pesquisam épocas do passado, as quais já não podem ser experimentadas por ninguém, mas que sim podem ser investigadas razoavelmente por meio de pegadas e influências (Vygotskij 2003, p. 136). Heinz von Förster mostra como eu poderia imaginar que fosse o único sujeito no universo e tudo o que me aparece fosse a minha imaginação; mas que as outras aparências que são similares à minha aparência, tornam razoável supor que se trate de outros sujeitos cujo interior seja parecido, mas não idêntico com o meu interior.

(Foerster 2003, p. 4). Isto, o ato de supor uma interioridade do outro que seja semelhante mas não idêntico com o meu interior, significa alteridade. O que Heinz von Förster deixa pensar no que diz respeito a outros seres humanos, se pode aplicar também a outros seres vivos. Todos os seres vivos têm certa similitude nas suas aparências comparadas com a minha aparência, ainda que em dimensões diversas, e isto aponta para pensar na alteridade dos outros seres da natureza.

A afirmação de Descartes, cogito ergo sum (penso, logo existo), constitui segundo Habermas uma análisis de pre-suposição (Habermas 1991, 1992), em que o fato de eu pensar –o que sei por que é evidente para mim, ou seja sou testemunha disso, – presupõe que existo como sujeito. Ou seja, a aparência (aparição) do fato que eu experimento algo, mostra a essência da minha existência.

Mas se pode realizar uma análisis de pre-suposição análoga sobre a alteridade. Logo que me (a)parece que outro sujeito, seja outro ser humano ou outro ser vivo, pense ou viva ou perceba algo, ou que algo lhe (a)pareça a ele/ela, também posso presumir que o outro pense ou perceba, então que ele ou ela (ou o ser vivo) exista como sujeito. Neste sentido, Vygotsky cita Friedrich Engels3 o qual mencionou que as formigas têm a capacidade de “ver” raios químicos onde Engels acrescentou que quem quer que lamente que nunca poderá saber como a formiga vivencia isto, tal pessoa está perdida. Mas este ponto que soa como uma piada, indica o ponto mais interessante: se a formiga tem a capacidade de “ver” algo que eu não consigo ver, tem que existir uma subjetividade outra.

Segundo Hans Heinz-Holz, Marx e Engels estenderam o conceito individualista de Descartes para a área social: Na práxis e na comunicação social, a primeira evidência de consciência já acontece na área social. (Holz 1983, 22ss) Este argumento pressupõe que a relação entre os seres humanos é de carater não só de sujeito-objeto, mas também da qualidade de relação entre sujeito e sujeito, por que numa relação eu-tu, “eu” vejo “tu”, sou testemunha de “tu”. E num conjunto de seres humanos que oscila entre comunidade e sociedade, em outras palavras onde as relações oscilam entre o caráter de sujeito-sujeito e o de sujeito-objeto, ou em ainda outras palavras entre espiritualidade (sentido social, ressonância) e economia no sentido de ‘heterotrofia’, a consciência –e junto com esta, a base de conhecimento – se desenvolve em primero lugar de maneira social. Suponho que a base da consciência é ainda mais ampla, que também a relação entre ser humano e natureza é tanto de caráter sujeito-objeto quanto de caráter sujeito-sujeito, que a gênese do ser humano se caracteriza pela práxis e a comunicação social também entre ser humano e natureza. Se isto estiver correto, a base da consciência e da subjetividade humana se encontrará no meio dessa relação social.

No mundo dos Aymara, segundo Juan José Bautista (1994, veja p. 91), o ponto de partida da práxis e do saber e conhecer é a comunidade e o diálogo, onde não existe um “eu” sem tu, e onde também a natureza, a pachamama, é um “tu”, sendo sujeito que pertence à comunidade.

Segundo tal interpretação da noosfera pelos Aymara, esta práxis já traz uma análisis de pre-suposição que mostra a subjetividade do outro, do tu, e da natureza, portanto do outro/da outra que constitui o eu. “El primer dato que tiene cualquier miembro de la comunidades la presencia y existencia de la comunidad, de la cual, cualquier ‘tu’ es parte” (ibidem).

Com Mikhail Bakhtin (2010, p. 409)4 e Lev Vygotsky (Wygotski 1971), podemos pensar que a subjetividade do indivíduo humano se desenvolve desde a realidade social e desde a dialogicidade da humanidade. O que acontece entre seres humanos, o inter-psíquico, se interioriza e se torna o intra-psíquico. Mais além, segundo o poeta Mapuche, Elicura Chihuailaf5, a língua vem da natureza, vem da emoção de escutar a natureza. E segundo várias expressões de indígenas, a cultura humana vem da floresta ou de espíritos de animais ou plantas. (Niemeyer 2010, p. 150; Moreira 2001, p. 116-118; conversas do autor com estudantes Umutina na UFSCar 2012). Isso sugere pensar que a subjetividade humana se desenvolve não só dentro da práxis e comunicação social humana, mas também dentro da rede social da toda a natureza. Existe uma relação dialética entre a rede social tanto humana quanto da natureza com cada sujeito singular e sua consciência. O fragmento ou o particular representa sempre o conjunto de todos. Porque a interação no nível mundial das relações sociais, inclusive as que acontecem por meio da economia é real; e como Enrique Dussel destacou (baseando-se em Marx) quanto à relação entre Norte e Sul global, na interação econômica mesma se trata de relações sociais (Dussel 1988). Se tem que estender este pensamento à interação do ser humano com a natureza. Na interação econômica acontece ao mesmo tempo uma interação social que tem uma dimensão espiritual. O capitalismo nega a dimensão social e espiritual. Coisifica as relações. Ao mesmo tempo se “fetichiza” as coisas. Supondo que existe uma relação dialética entre a subjetividade singular e as relações sociais tanto humanas quanto com a natureza, segue que a exclusão social da natureza e a exclusão social duma grande parte dos sujeitos humanos do Sul global que trabalham ou são excluídos do trabalho, criam o inconsciente.

1.4. Mais argumentos em favor da subjetividade da natureza

A) A ciência natural se torna encantadora

A sociedade contemporânea estimula tanto “fetichizar” as ciências e os seus resultados, esta tal fetichização considera estes resultados como coisas às quais se costuma segurar afetivamente ou libidinosamente como se se tratasse dos mesmos processos de vida. A partir daí se torna muito difícil perceber que em algumas áreas das ciências aconteceu uma transformação que equivale a uma revolução copernicana. Se trata de desenvolvimentos na física, segundo Ilya Prigogine (1996), Lee Smolin (2013), de autores da biologia como Maturana e Varela (2001) que trataram o tema da auto-organização da matéria, ou também da ciência humana sintética desenvolvida por Wolfgang Jantzen6. Embora, outros autores, anteriormente, já tinham pensado neste sentido, como por exemplo Hegel (1952, p. 195)7