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Com treze anos, Jorn já é o líder de uma gangue de crianças de rua. Ele só conhece a noite, a estação de trem decadente como seu refúgio e a lógica implacável do gueto. Ao seu lado: Nala, que parece mais forte do que se sente; Boris, que esconde silenciosamente suas feridas; e Rosita, que mantém o grupo unido com uma língua afiada e uma coragem ainda maior. O que começa como um desafio e um pequeno furto rapidamente se transforma em um ciclo de poder, medo e falsa liberdade. Em meio a ciclomotores roubados, gangues, desejos secretos e as cicatrizes do cotidiano familiar, os quatro aprendem como a linha entre a união e a desintegração pode ser tênue. Amor, lealdade e traição caminham lado a lado — e cada decisão tem um preço. "Treze" é um romance intransigente, cru e emocionante sobre a infância no limite: sobre a fome de reconhecimento, sobre amizades mais fortes do que qualquer família — e sobre a verdade que os adolescentes experimentam quando são forçados a amadurecer cedo demais.
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Seitenzahl: 392
Veröffentlichungsjahr: 2025
Elias J. Connor
Treze
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Inhaltsverzeichnis
Titel
Dedicação
Capítulo 1 - A estação ferroviária
Capítulo 2 - Luz do dia
Capítulo 3 - O roubo
Capítulo 4 - Gangues no bairro
Capítulo 5 - O olhar de Nala
Capítulo 6 - O segredo
Capítulo 7 - A prova da coragem
Capítulo 8 - Gabinete de assistência social à juventude
Capítulo 9 - Primeiras rachaduras
Capítulo 10 - A vingança dos cães
Capítulo 11 - O plano de Rosita
Capítulo 12 - Sob a luz do luar
Capítulo 13 - A libertação
Capítulo 14 - Arrumando a casa
Capítulo 15 - O grande golpe
Capítulo 16 - Traição
Capítulo 17 - A armadilha
Capítulo 18 - Rompendo
Capítulo 19 - A noite da decisão
Capítulo 20 - A carta
Sobre o autor Elias J. Connor
Impressum neobooks
Para minha namorada.
Musa, confidente, amor verdadeiro.
Obrigado por estar presente.
É noite, e a estação de trem não está exatamente adormecida, mas respira de forma diferente. A lâmpada acima da plataforma oscila como se alguém com uma mão frágil tivesse acendido uma luz improvisada. O vento assobia pelas janelas quebradas, um sopro frio que carrega pedaços de papel e sacolas plásticas como pequenos pássaros. Um cachorro late à distância, e o som ecoa pelos trilhos vazios como um grito de alerta. Quatro figuras se movem na penumbra, pouco mais que sombras ao luar; contudo, todos que vêm aqui reconhecem suas silhuetas. São as crianças da estação, os donos de uma ruína que lhes é mais lar do que qualquer lugar com portas fechadas.
Jorn vai na frente. Ele tem treze anos e ombros com a postura de um homem mais velho. Seu rosto é estreito, o maxilar rígido, os olhos escuros como agulhas; ele veste uma jaqueta que parece grande demais porque as mangas escorregam das mãos, mas é justamente isso que o faz parecer mais alto. Dizem que a frieza o envolve como um cachecol — ele a usa com a autoconfiança de um garoto que aprendeu que a postura às vezes é mais importante que a comida. Às vezes, quando se olha no espelho — se é que ainda se olha no espelho —, vê ali um garoto que é deixado sozinho com muita frequência. Mas ele não conta isso a ninguém. Os outros preferem acreditar na imagem que ele projeta: calmo, invulnerável, destemido.
Nala caminha ao lado dele. Ela veste um suéter grosso e jeans, com os joelhos rasgados, como tantas vezes antes. Seus cabelos estão soltos, levemente despenteados. Ela caminha com passos firmes, como se estivesse prestes a correr, mas seus olhos sempre retornam a Jorn, como se fossem um ímã, como se ele fosse um continente e ela a única pessoa autorizada a tocar a terra. Os cantos de sua boca frequentemente brincam com um sorriso, mas há algo mais em seu olhar: uma admiração calorosa, quase perfeitamente entrelaçada com preocupação. Ela vê em Jorn não apenas o líder; ela vê aquele que permanece acordado quando o sono é impossível, aquele que tem um plano, mesmo que consista apenas em coragem. Nala é forte, mas não sem medo. Sua força nasce da resiliência interior: ela aprendeu a se levantar, e é por isso que o faz.
Boris puxa o capuz ainda mais para baixo, cobrindo o rosto. Ele está sempre um passo atrás dos outros, como se não quisesse pertencer, mas pertence. Seus olhos são vigilantes, frequentemente fitando cantos onde outros suspeitam de inquietação. Ele fala pouco. Quando fala, cada palavra carrega peso, como algo que ele cuidadosamente reúne antes de cuspir. Suas mãos escondem algo em um bolso — talvez um pedaço de papel, ou chumbo, ou um pequeno segredo. Às vezes, é possível ver o tremor de seu lábio quando algo fica muito alto, quando vozes se aproximam demais. São os ecos de um mundo que o feriu. Boris carrega feridas que nem sempre são visíveis, e o silêncio é sua armadura.
Rosita é a última. Ela está sempre de braços cruzados. Seus olhos são afiados como agulhas, sua boca uma linha reta que raramente se suaviza. Seu sarcasmo é afiado, seu humor, em sua maioria, amargo, como se ela estivesse lambendo o sal da terra com ele. É ela quem arromba uma porta quando necessário e a primeira a dizer o que todos pensam, mas ninguém mais se atreve a dizer. Ela protege o grupo com uma raiva que muitas vezes não é tanto estridente, mas persistente. Rosita carrega cicatrizes, pequenas marcas discretas de uma vida que ela não escolheu. Ela está com raiva, mas tem uma âncora em sua mente: a amizade significa mais para ela do que ser descolada. Ela a defende, muitas vezes sem dizer uma palavra. Ela é a mais nova do grupo, quase doze anos.
A estação de trem é o quartel-general deles, uma ruína com nome e história. Trens costumavam passar por aqui, pessoas chegavam e partiam. Agora, as paredes estão abertas, o gesso se desfaz e os trilhos estão cobertos de ferrugem; musgo cresce entre eles, como grama em uma antiga estrada. Grafites em cores berrantes adornam as paredes: slogans, nomes, corações com flechas — a arte daqueles que ainda querem se expressar, mesmo quando ninguém mais os ouve. Em um nicho, uma velha poltrona meio rasgada, o tecido cheio de buracos, as molas saindo como pequenos ossos brancos. Ao lado, uma mesa de compensado, um copo, algumas latas vazias, uma caixa de fósforos. Na parede, um pôster de uma estrela pop há muito esquecida, seus olhos como vidro descolorido. O cheiro de óleo, urina e graxa se mistura com o aroma frio da noite; em algum lugar, a água pinga, produzindo um som monótono e rítmico que lhes soa como a batuta de um maestro.
Jorn para, coloca a mão no sofá de madeira, sente a superfície áspera e deixa os dedos repousarem ali, como se estivesse testando se o que eles afirmam noite após noite não é apenas uma ilusão. Nala se encosta na parede, os ombros relaxados, como se tivesse encontrado algo ali para segurar sua mão. Boris puxa o capuz para cima, os olhos fixos em um canto escuro. Rosita se vira, examinando o cômodo, procurando pontos fracos, esconderijos, maneiras de organizar uma fuga, se necessário.
“Nenhum som hoje”, diz Jorn. Sua voz é calma, um tom que transmite instrução e comando, mesmo que sejam apenas amigos. Não é a autoridade de um adulto, mas sim a de um menino que aprendeu que a calma fala mais alto que o pânico. “Vamos dividir o campo. Dois para lá, dois para cá.” Ele acena com a cabeça e aponta com o queixo para o outro lado da plataforma, onde as sombras são mais densas.
Nala coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha.
“Eu fico com a torre”, diz ela, “de lá dá para ver a rua inteira”.
Sua voz revela entusiasmo, mas também orgulho; ela gosta da responsabilidade, embora secretamente espere que seu olhar recaia sobre Jorn quando ele não estiver olhando.
"Vou para os trilhos", murmura Boris. Ele tenta fazer parecer casual, mas seus olhos o denunciam que não busca a proximidade dos trilhos sem motivo: ali ele se sente seguro, como se o ruído dos trilhos fosse uma batida do coração, tornando o trabalho com eles menos doloroso do que pensar neles.
Rosita resmunga, um som atrevido.
“Vou ficar aqui. Se baterem na porta de um de nós, eu falo com ele. Ou pelo menos grito.” Ela sorri brevemente, apenas com um canto da boca, e por um instante sente-se menos irritada e mais intensamente viva.
Eles se espalham como praticaram mil vezes, sem que nenhum adulto jamais os oriente. A noite os abraça como se fossem velhos amigos. Eles ouvem a cidade respirar: um carro piscando à distância, para depois desaparecer novamente; passos tão distantes que parecem quase imaginários; o ocasional tilintar de vidro quebrado caindo com uma rajada de vento forte. Nesta cidade que nada lhes oferece, cada som é perigo ou confirmação de que ainda existem.
“Se coragem não é coragem, então é loucura”, diz Rosita baixinho, para que só Boris ouça. Boris acena com a cabeça sem dizer nada. Um lampejo de algo parecido com concordância surge em seus olhos, e logo desaparece.
Jorn pensa na mãe. Pensa em como ela às vezes fica sentada no apartamento com as persianas abertas, como se esperasse por alguém que nunca chega. Pensa em garrafas meio vazias, em papéis e cigarros, na tosse que ecoa pelas suas noites. Os pensamentos são raros, mas assim que surgem, empurram a imagem da estação de trem para o horizonte, como a neblina que turva os contornos de um navio. Jorn aprendeu a deixar o coração no porta-malas de uma lambreta roubada — discretamente, no fundo, como se não pudesse machucar ninguém daquele jeito. Aprendeu que exaustão e frieza são a mesma armadura. E aprendeu que, às vezes, um roubo significa menos do que um olhar que diz: Você não está sozinho.
Nala percebeu isso. Ela o observava quando ele estava sozinho, e uma determinação silenciosa cresceu dentro dela, quase um sussurro. Ela queria preencher os vazios dele, mas não queria saber se ele também queria isso. Uma linha invisível pairava entre eles: ela era quem queria dar, ele era quem se agarrava. Mas a proximidade doía, porque Jorn nunca levava nada que se chamasse afeto levianamente.
Boris tira lentamente um pedaço de papel do bolso, dobrado e enrolado como se fosse feito de papel fino. É um desenho. Poucas pessoas sabem que Boris desenha. Ele não é o tipo de pessoa que você esperaria que fosse artística; ele é o tipo que fica quieto. Mas sua caligrafia é diferente: no papel, há um desenho de uma estação de trem, não esta, mas como deveria ser — com janelas robustas, trilhos reluzentes e pessoas sorrindo. No desenho, as crianças parecem figuras menores do que elas mesmas, mas estão de mãos dadas. Boris dobra o desenho e o guarda novamente, como se fosse algo precioso demais para ser exposto à noite. Ninguém pergunta. Ninguém precisa da resposta que ele está tentando dar.
Rosita coloca um cigarro entre os dedos e dá uma tragada, mesmo sabendo que não faz bem. Fumar tem cheiro de rebeldia, de algo que ela se impõe para se manter acordada.
"Se o Rico aparecer por aqui hoje à noite", ela diz, "ele vai ter o que merece." Sua voz é como o cabo de uma faca: "Mas ninguém vai nos pegar hoje." Os outros rosnam, entram na brincadeira, o jogo que dominam com perfeição: ameaçar, deslumbrar, sobreviver.
“Não somos reis”, diz Jorn, “somos apenas…” Ele procura a palavra certa e não encontra nenhuma que explique a gravidade de sua agressividade. “Somos o que sobrou de nós.” Isso é mais filosofia do que ele gostaria de admitir. Os outros assentem. Todos sabem o que sobrou: algumas moedas, uma cadeira quebrada, uma amizade que pesa mais do que qualquer coisa que já possuíram.
Um som apressado. Passos. Vozes desconhecidas, ásperas, sem treinamento. A silhueta de um carro se distancia; dois homens saem, carregando o que parecem ser caixas de papelão. A lua pinta traços de carvão em seus rostos, os olhos dos estranhos piscam. Jorn mal levanta a mão, faz um sinal para Nala. Ela desaparece, uma sombra entre os trens, e no segundo seguinte está no topo da torre, um pequeno ponto observando a rua lá embaixo.
A noite não é uma heroína, apenas um lençol esvoaçando na brisa. Contudo, para essas quatro crianças, ela é uma aliada, às vezes sua única amiga. Elas têm umas às outras, e isso basta para compartilhar o frio, basta para quebrar o medo em pequenos gestos de bondade. Quando o cheiro de gordura queimada invade a estação pela manhã e o sol espalha farrapos vermelhos pelos trilhos, elas percebem que são apenas figuras em uma escuridão maior, mas, por ora, pertencem umas às outras, e é isso que merecem.
Jorn respira fundo. Ele ouve o leve ronco do nariz de Boris, que surge regularmente na noite como uma segunda voz, ouve os passos de Nala na torre, que soam como uma batida de coração. Rosita se encosta no poste, inalando a fumaça como se também estivesse inalando coragem. Dentro dele há uma mistura de cautela e turbulência, um sentimento que parece indiferente, mas que governa tudo: uma espécie de vigilância que só se tem quando se sabe que algo vai acontecer. Algo que não é agradável. Mas enquanto estiverem juntos, Jorn pode enfrentar o mundo.
A noite já não envolve o grupo como um manto; torna-se o espaço que compartilham. E nesse espaço, inventam regras e rituais, pequenos atos de pertencimento. Boris, em silêncio, tira uma latinha e divide sua ração de tabaco com Rosita. Nala pega um cobertor velho, dobra-o cuidadosamente e coloca uma ponta sobre o sofá para que alguém possa dormir se estiver cansado. Jorn se levanta, caminha até a saída e contempla as ruas do gueto como se estivesse examinando toda a vizinhança. Ele não pensa em nada e pensa em muitas coisas ao mesmo tempo. Pensa que esta estação de trem não é apenas seu esconderijo, mas também o último bastião de algo parecido com uma família.
À medida que o vento aumenta e o cheiro de chuva impregna o ar, ouvem o raspar dos pneus na estrada enegrecida. Um ônibus, um pouco mais distante, sacode o asfalto. Jorn lança um último olhar. Sua voz é suave quando diz: "Vamos ficar juntos". Não é uma ordem, não exatamente. É uma promessa, sussurrada, destinada apenas aos outros. Nala sorri, breve e fugazmente, e nesse gesto reside um futuro ainda sem nome. Boris acena com a cabeça, Rosita aperta o casaco contra o corpo.
A noite os acolhe e nada lhes devolve. Mas nessa acolhida reside uma espécie de lar, um lar que encontram quando tudo o mais os abandona. Permanecem ali, como um bando de pequenos pássaros resistentes que não podem voar, mas descansam juntos. A estação de trem é seu quartel-general, seu reino. E em meio à cidade destruída que não os deixa partir, eles se agarram uns aos outros.
A manhã se insinua sobre Colônia como uma densa fumaça, como se as casas tivessem decidido dormir mais do que a cidade. Os primeiros raios da aurora atingem fachadas sulcadas, varandas e cortinas gastas que parecem mais tímidas do que protetoras. Aromas emanam dos apartamentos: café, gordura, às vezes algo doce, frequentemente apenas a amarga lembrança do que um dia foi sustento. Sacolas de papel, uma bicicleta sem pneu dianteiro e bitucas de cigarro se acumulam nas ruas, e pombos as bicam como se fossem os únicos que ainda tivessem algo a fazer ali.
Os quatro seguem caminhos diferentes. É um movimento que executam sem esforço — um ritual familiar, profundamente enraizado no gueto. Conhecem os atalhos, as escadas tortas, as latas de lixo, os lugares onde os cães de guarda latem e aqueles onde os vizinhos só aparecem depois que algo acontece. Movem-se como nós em uma rede cujos padrões já decifraram há muito tempo.
Jorn caminha sozinho pelo corredor estreito até seu apartamento. O cheiro de comida queimada e cigarros baratos paira no ar do corredor, onde anos de desgaste desgastaram as paredes, lisas pelo toque e pelos impactos. A porta do apartamento está entreaberta, como se nunca tivesse sido fechada direito. Ele a empurra — não furtivamente, nem com orgulho, apenas por hábito. Lá dentro, sua mãe está sentada à mesa, uma figura simultaneamente adormecida e desperta: rugas ao redor dos olhos, uma xícara de café vazia com uma marca de óleo no fundo. Seus cabelos estão desgrenhados, seu rosto como um mapa de onde se descortinam caminhos. Seus braços estão estendidos, suas mãos imóveis, como se estivesse contando algo em seu interior.
Jorn para na porta. Limpa a garganta, um ruído baixo que ninguém notaria. Sua mãe não levanta o olhar. Seus olhos estão fixos na tela amassada da televisão, exibindo silenciosamente algo que poderia ter terminado há dias. Ela dá uma tragada no cigarro, os dedos treinados, o movimento tão automático que se poderia pensar que ela não tem mais corpo, apenas um hábito.
“Mãe”, diz Jorn, e a palavra tem a inofensividade de uma carta caindo em uma caixa de correio vazia. Ela não registra o som. Ele dá um passo à frente. “Mãe.”
Dessa vez, seu olhar desliza por ele como se passasse por um fantasma. Ela pisca como se estivesse pensando em algo, uma conta, a cor das paredes, o momento em que não pode voltar atrás.
"Tem... alguém aí?", ela murmura, mais para os sons do que para ele. Ela se levanta — lenta e pesadamente — mas não vai até ele; em vez disso, permanece à mesa, como se precisasse exibir uma fisicalidade que já não encontra respaldo em nada.
Jorn sente o vazio como um peso. Ele se acostumou com essa invisibilidade, com a sensação de que sua existência não inspira expectativas. Ele vai até a pia, abre a torneira, escuta o gotejar como um ritmo que o ancora. Seus dedos tremem levemente, nada além do necessário. Ele busca palavras que possam chamar a atenção dela, mas sabe que não há som mais forte do que a indiferença que a consome por dentro.
“Não demorei muito”, diz ele, com a maior naturalidade possível. Um pequeno experimento, como um teste para ver se a realidade ainda reage.
Sua mãe dá de ombros.
“Não se preocupe com isso, filho. O café da manhã já acabou.” Ela puxa um maço de cigarros para mais perto, como se isso fosse substituir uma refeição. Não é maldade que a move; é desmotivação. O mundo a deixou faminta e não lhe deu nada em troca. Em alguns dias, ela nem se interessa por nomes. Jorn fica sentado como se estivesse avaliando a intensidade dessa indiferença, pega a xícara de café, sente a casca pegajosa e, de repente, se sente criança novamente, e vazio ao mesmo tempo.
Ele pensa em como as coisas costumavam ser — se é que algum dia foram melhores. Um pai que raramente aparece. Contas grudadas na janela como nuvens escuras. Ninguém para perguntar como foi seu dia, ninguém para se levantar quando ele chega sozinho. Nessa ausência, outro tipo de proximidade cresce: a proximidade com Nala, Boris, Rosita. O tipo que permanece porque eles retribuem seus sentimentos. Ali, na estação de trem, ele não é invisível. Ali, seu passo significa algo; ali, seu olhar significa algo. Mas em casa, ele é apenas a lembrança de um dever não cumprido.
Nala, por outro lado, caminha por ruas estreitas, passando por parquinhos onde a areia é cinza, onde as crianças têm tijolos em vez de brinquedos. Sua casa é um daqueles apartamentos com varanda de onde pendem cordas e roupas varaladas dançam no ar. Sua mãe ainda está na cama; ela ouve o rádio, as vozes ficando cansadas antes mesmo de acordarem completamente. Nala coloca a mochila no chão, passa a mão pelos cabelos e seu olhar se fixa na porta do apartamento como um martelo, nos tijolos, algo que não lhe oferece nada. Não é exatamente rejeição que ela sente; é a sensação de que ninguém cria raízes ali. Sua mãe mal a nota. Talvez seja assim que deva ser — menos questionamentos, menos responsabilidades.
"Você estava lá fora?", pergunta a mãe sem se levantar. Não é uma repreensão, mas sim um profundo cansaço que pode transformar perguntas em ameaças.
Nala apenas acena com a cabeça, e isso basta. Papéis estão sobre a mesa, nenhum deles importante para a vida dela. Nala se senta, pega um pedaço de pão seco, mas pelo menos é alguma coisa. Seus dedos estão ásperos, como se ela tivesse acabado de manusear coisas impróprias para crianças.
Boris chega ao seu apartamento, uma cela de dois cômodos onde o abajur pende de uma corrente e as paredes têm rachaduras que parecem estradas. Sua mãe não está lá; aparentemente, seu pai também não. Um bilhete com um número de telefone que ninguém mais liga está colado na parede. Sobre a mesa de centro, uma caixa contém anotações e contas antigas. Boris coloca a mochila no chão, vai até a janela, abre um pouco as cortinas e olha para o pátio onde uma lata de lixo reina absoluta. Ninguém o chama pelo nome. O silêncio não é surpreendente; é esperado. Esboços decoram seu quarto, alguns desenhos a lápis, linhas que mostram como ele vê o mundo — não como ele é, mas como ele gostaria que fosse. Ele junta as mãos, olha para os desenhos. Nenhum som vindo de fora. É como se ele estivesse respirando dentro do espaço fechado, preenchendo o ar com sua própria intensidade.
Rosita não encontra ninguém em casa quando entra no apartamento; o corredor cheira a gordura quente, como se tivesse havido um último banquete naquela cozinha. Ela joga a bolsa num canto e se atira num sofá que já viu dias melhores. Sua mãe está fora, como sempre, ocupada em alguma noite. Rosita revira os olhos, levanta-se, pega uma lata de cerveja na geladeira, abre-a e toma um gole como se fosse água, como se fosse apenas o ritual que poderia tornar a manhã mais suportável. Ela pensa em Boris, em seu silêncio, em seus desenhos, e algo quente e suave a invade — como uma promessa ou uma dívida. Ela sabe que é durona, mas tem uma ternura que revela apenas com cautela.
Ao final da manhã, os quatro se encontram novamente — não na estação de trem, mas em uma praça estreita que serve como coração de Colônia. Uma banca antiga vende cigarros e café morno. A dona lhes dirige um breve aceno de cabeça; ela conhece seus rostos, suas rotinas. Às vezes, é surpreendente como tão pouca atenção pode levar a uma vida tão despreocupada. Ninguém pergunta se precisam de algo. Ninguém pergunta se estão doentes. Esse é justamente o ponto: em suas famílias, eles não passam de opiniões fixas, coisas que simplesmente existem. Não é uma repreensão; é uma ausência tão normal para eles quanto os trilhos da ferrovia que saem da estação.
"O que vamos fazer hoje?", pergunta Rosita enquanto se senta em um muro baixo. Sua voz crepita como couro velho. Não é uma pergunta sobre um plano, mais um teste para ver se alguém vai responder.
Jorn encosta-se num poste de luz, olhando para os sapatos. Seus dedos giram uma moeda entre o polegar e o indicador, como se ponderasse as possibilidades do mundo. "Estamos olhando", diz ele finalmente. "Estamos vendo quem está lá fora." Há algo de definitivo em sua voz, algo que emerge do silêncio; não alto, mas firme.
Nala se aproxima. "Se não fizermos nada", diz ela, "isso vai acabar conosco." Ela olha na direção de Jorn, com os olhos pesados. "Não quero que isso seja o nosso fim." Não é uma acusação, mais um apelo, quase uma ordem, vinda de um lugar profundo. Jorn olha para ela, e por um instante seus olhares são apenas hesitantes. A sensação entre eles é como uma corda que não deve ser cortada.
Boris tira uma pequena bolsa do bolso do casaco e coloca o desenho sobre a pedra ao seu lado. Rosita inclina-se para a frente, olha para o desenho da estação de trem e, por um instante, seu olhar se suaviza. "Nada mal", murmura. "Se pudéssemos reconstruí-la..." Sua voz se perde no ar. A ideia é risível, quase desrespeitosa, mas em todas elas, algo como um lampejo de saudade. O desenho não mostra apenas a estação de trem; mostra pessoas se abraçando. É apenas um esboço a lápis, mas também uma sugestão: viver de forma diferente de como vivemos agora.
Eles conversam. Não sobre grandes planos, não sobre o futuro como os adultos. Conversam sobre coisas reais e tangíveis: quem os viu, quais assaltantes estão por perto, se alguém os deterá mais tarde. Falam com uma linguagem curta e pragmática, como a sequência de passos que alguém segue antes de assaltar uma loja ou roubar uma motocicleta — e, no entanto, não dizem em voz alta o que pensam. É quase como se evitassem as palavras porque acreditam que, se forem ditas, se tornarão mais verdadeiras e não terão mais escolha.
A negligência que sofrem em casa os molda, mas não os une apenas na dor. É também um catalisador, um vazio necessário no qual se encontram. Sem essa carência, poderiam ser meros indivíduos, talvez crianças entre muitos. Com ela, formam uma estrutura. A estação de trem é o seu centro, o desenho o seu sonho, o conselho do seu afeto rude a sua lei.
“Temos que ter cuidado”, diz Boris de repente, com a voz grave, como se estivesse a praguejar. “O Rico não vai dar trégua.” Os seus olhos percorrem a praça como se visse o que os outros não veem: olhares furtivos, silhuetas que passam. Os outros assentem. Conhecem o nome, conhecem o rosto, conhecem as ameaças que o Rico dispara como golpes de faca.
Jorn finalmente dobra a moeda e a guarda no bolso.
“Então temos que ser mais rápidos”, diz ele. “E mais espertos.” É uma frase quase inaudível, mas carregada de um senso de obrigação. Ele olha para o rosto de Nala. “E se for preciso, faremos o que for necessário.”
Palavras que funcionam como uma válvula de escape. Nala olha para ele, abertamente, e é como se quisesse segui-lo – aonde quer que ele a leve.
Eles se dispersam para realizar diversas tarefas: alguns recados, algumas espiadas pelos becos. O horário do dia chama de forma diferente da noite, mas sob o sol a cidade não muda fundamentalmente. Ela apenas fica mais brilhante, mais nítida em suas fraturas. Os quatro seguem caminhos separados, cada um em sua própria direção, e ainda assim fios invisíveis os atraem de volta ao mesmo lugar. Cada um deles leva o mundo consigo, guarda-o no bolso, dobra-o como um pano, para desdobrá-lo mais tarde.
Jorn faz uma breve pausa, olha para as mãos. Pensa na invisibilidade em casa, no peso da indiferença, e pensa em Nala, em Boris, em Rosita — nas pessoas que não sentem falta da sua presença. Um leve sorriso surge em seus lábios. Não é um sorriso largo, nem muito convincente, mas está lá: uma faísca de que ele pertence a alguém. E talvez seja justamente esse sentimento que o impulsiona, que um dia o fará correr na direção errada. Mas agora, no início da manhã, o ar tem gosto de possibilidade: de rebeldia, de dias em que as coisas poderão ser diferentes. A cidade é pesada, mas, por ora, ele a carrega.
O sinal agora é apenas um eco distante quando Jorn empurra a porta da escola. O corredor cheira a suor velho e papelão quente; as paredes estão cobertas de dicas sobre como lidar com o estresse, como se bilhetes e frases tivessem o propósito de preencher as lacunas no conhecimento das crianças. Ele entra arrastando os pés, com a mochila meio pendurada em um ombro, os sapatos batendo no chão. Não se importa que a aula já tenha começado — a escola é uma formalidade para ele, um lugar onde o tempo passa. As aulas são apenas um preenchimento; a vida está lá fora.
"Finalmente você chegou." A Sra. Köhler, a professora da turma, está com as mãos na cintura, e sua voz tem aquele tom fino e cortante que os professores adotam quando querem mostrar que são mais do que apenas educadores: autoridade. Seu cabelo está preso em um coque apertado. Ela o olha por cima dos óculos e, pela primeira vez, um toque de raiva se infiltra na indiferença que Jorn geralmente exala. "Sente-se, Jorn. Estamos apenas começando."
Ele acena com a cabeça, faz um gesto hesitante em direção a um assento vazio — bem em frente à janela, onde é mais fácil se perder em devaneios. Um garoto da sua turma, Mehmet, olha para ele, um olhar que se prolonga mais do que o necessário. Mehmet é um daqueles colegas que raramente seguem as regras, mas franzem a testa quando os outros não as seguem. Hoje, há algo nele que cheira a vingança: há alguns dias, Jorn gritou algo para ele, algo estúpido que feriu seu orgulho como uma pequena picada. Hoje, a tensão em sua postura soa como um fósforo aceso.
A hora passa num turbilhão de fórmulas e nomes, sem qualquer fundamento. Mas os olhares que lhe são dirigidos são como uma faca afiada, que ressoa entre as páginas. Durante o intervalo, Mehmet surge subitamente diante dele, com as mãos já não nos bolsos.
"Então você acha que é o máximo, é? Sempre fugindo, sempre falando besteira, e ninguém diz nada? Você se acha alguém?"
Jorn olha para ele, com uma expressão calma.
"O que você quer, Mehmet? É só a escola. Relaxa." Seu tom é casual, suas palavras curtas, temperadas com a gíria que as ruas dão aos seus jovens como armadura. Não é uma frase solene, mais um gesto que diz: Não tenho medo de você.
"Você acha que pode fazer qualquer coisa", rosnou Mehmet. "Você rouba o ridículo das pessoas e ainda sorri enquanto faz isso."
Uma risada vinda de lado, uma voz zombeteira, e a tensão aumenta. Dois outros colegas se aproximam, ombros largos. Em segundos, o círculo diminui, a respiração fica mais quente. Um golpe acerta — curto, impulsivo. Jorn não recua; sua postura é de aço, endurecida pelas noites e provocações. Ele revida, automaticamente, como se seu corpo estivesse acostumado a lutar. Não é uma luta calculada, apenas uma reação. A turma fica em silêncio. Alguns alunos filmam com seus celulares porque atos de violência prometem cliques; outros desviam o olhar, como se tentassem evitar a culpa.
O diretor, Sr. Breuer, parece ter ouvido a confusão e exibe uma chave do escritório como se fosse um troféu. Ele é alto, com uma barriga que diminui um pouco sua autoridade, e um bigode que lhe confere um ar sério. Tem o hábito de respirar fundo, como se precisasse acalmar o mundo para que ele pudesse funcionar. "Jorn", diz ele com uma voz que tenta soar oficial, "por favor, venha comigo ao meu escritório."
No corredor, conversas ondulam pelo ar, como um passe-partout: olhares se cruzam, circulam olhares. Jorn segue o diretor, não apressadamente, mas com uma serena gravidade. Seu coração bate calmamente, mas algo se agita em seu estômago como um besouro, contra as rachaduras de sua compostura. O vidro da porta do escritório reflete seu rosto; por um instante, ele parece um estranho para si mesmo. O Sr. Breuer senta-se atrás de sua mesa. Um cartaz tremula diante das janelas: "Respeito é fundamental", e as letras parecem ocas.
O diretor bate na mesa.
"Recebi reclamações sobre uma briga na sua turma. Meninos brigando, isso é inaceitável. Tenho o dever de informar sua mãe, Jorn. Você tem algo a dizer sobre isso?"
Jorn estremece.
“Vá em frente e faça”, diz ele, com uma indiferença que exala cinismo. “Minha mãe recebe todas as ligações. Não a incomoda.” Sua voz soa um pouco como um gesto de desprezo. Ele não está com medo, não de verdade. Qual o objetivo da ligação? Talvez uma banalidade, uma breve repreensão, e depois silêncio novamente. O diretor folheia documentos como se estivesse procurando a declaração apropriada do gabinete.
"Você não tem medo das consequências?" O Sr. Breuer não pergunta em voz alta, mas a pergunta paira no ar como uma acusação grave. Jorn olha para ele, fixa o olhar e, então, uma risada curta e cortante escapa de seus lábios.
"Sinceramente? O que eu vou receber? Prisão domiciliar? Eu chamo isso de treinamento. Eu saio. E se a coisa ficar séria, eu aceito. Sem problema." Seu tom é atrevido, uma pequena tempestade de provocação.
O diretor faz uma última tentativa de mudar as coisas. “Você precisa entender, Jorn, existem regras. Se permitirmos algo assim…” Ele estende a mão, como se as regras fossem tangíveis, como se pudesse colocá-las sobre a mesa. Jorn ergue uma sobrancelha, os cantos da sua boca se contraem. Não é covardia, mas um teste: quem ainda detém o poder aqui? Seu jeito de falar é a linguagem das ruas, a roupagem do underground; é uma resposta ao absurdo que encontra diariamente.
“Chame a polícia”, diz Jorn finalmente. “Me algeme. Vejo que bem isso vai fazer.” A ameaça não é em voz alta, mas é poderosa. O Sr. Breuer se levanta, buscando por um instante uma autoridade protegida não por números, mas por uma voz.
"Não é assim que se faz, Jorn. Quero que você assuma a responsabilidade."
Responsabilidade. Uma palavra pesada como chumbo, que jamais deveria pesar sobre mesas vazias em lares. Jorn franze os lábios; um tom de escárnio mordaz paira em seu olhar.
Lá fora, no corredor, os alunos murmuram. Jorn é mandado de volta para a sala de aula com ordens para se apresentar novamente ao diretor depois da aula. O professor oferece uma oração silenciosa, como se ele próprio fosse um guardião, agarrando-se a uma faísca de responsabilidade. Jorn sorri, sem muita convicção. Ele consegue conviver com isso; de certa forma, é rotina. Infrações, escola, diretor, punições insignificantes que não deixam marcas. Seu mundo é resistente a esses pequenos golpes, forjado em noites em que a dor opera segundo suas próprias regras.
Rosita e Boris chegam atrasados. Entram na sala de aula, não com pressa, mais como duas pessoas que bem que poderiam aproveitar mais uma manhã. Rosita traz o humor ácido com que derruba barreiras. "Havia algum engarrafamento?", pergunta, as palavras soando como uma provocação ao barulho ensurdecedor da escola. Boris senta-se em silêncio, pega seu caderno, como se a pontualidade fosse uma incógnita matemática que ele pudesse resolver se encontrasse a fórmula certa. Ambos sabem que as regras da escola têm um significado diferente para eles. Têm pouco respeito por um sistema que nunca os respeitou.
Nala está desaparecida. Sua ausência cria um vazio palpável no ar, um silêncio como se faltasse um instrumento que, de outra forma, carregaria a melodia. A fileira de assentos em frente permanece vazia, uma cadeira como um coração sem pulso. O professor não faz perguntas; numerosas ausências são consideradas ondulações insignificantes. Mas Boris ergue brevemente o olhar, os olhos semicerrados. Algo dentro dele o chama, uma pequena preocupação que se recusa a ser expressa em palavras. Rosita protege a testa, como se a tensão pudesse lhe custar algo. Jorn, no entanto, dá de ombros e pensa: talvez ela esteja doente, talvez esteja em casa — ou talvez tenha outros motivos. Com isso, fecha uma janela que normalmente deixava entrar ar fresco.
A aula continua. Durante o intervalo, eles se retiram para o pátio da escola, um pequeno parque de concreto com bancos enferrujados. Os meninos da outra turma provocam uns aos outros, lançando palavras como dardos. Alguns alunos mais novos olham para cima, atentamente, como se estivessem aprendendo lições práticas sobre violência. Jorn permanece de pé com as mãos nos bolsos, a personificação da calma. Ele não diz nada sobre sua conversa com o diretor. Sua arma contra a solidão é seu manto de serenidade. Rosita o observa, percebendo que algo está diferente.
"Você estava no escritório do diretor?", ela pergunta, diretamente, sem rodeios.
Jorn sorri.
"Claro. Bobagem velha. Deve ser meu charme." Sua voz é cortante, e eles riem porque o riso é uma camada protetora.
Mas o clima está mais leve do que antes. Sem Nala, falta um certo calor. A escola segue silenciosamente pelo dia com sua indiferença, e as crianças, que não têm muito, aprendem rapidamente a chamar a atenção por conta própria: com piadas, desafios, pequenas travessuras. A tarde se torna um momento de possibilidades. A cidade banha as ruas com uma luz bruxuleante; o cheiro de óleo de fritura e gasolina paira pelos becos. Rico é mencionado. Os fugitivos pronunciam o nome como se fosse uma tampa sob a qual o perigo ferve. As crianças sabem que ele está apertando o cerco, mas cada uma tem seus próprios motivos para não se submeter a ele.
“Nos encontraremos na estação esta noite”, diz Rosita ao se afastar do grupo. “Todos.” Sua voz é incisiva e seu olhar carrega a lógica de uma guerreira. “Precisamos discutir o que vamos fazer.” Esta não é uma sugestão inofensiva. É uma convocação para decisões. Boris acena com a cabeça. Jorn não pergunta, porque sabe que chegará a isso. Nala não está lá, mas dentro dele, a cadeira vazia dela desperta pensamentos. Por um instante, ele a vê diante de si, subindo as escadas, os ombros levemente curvados para a frente, e então a imagem desaparece.
As horas da tarde passam como uma série de pequenas batalhas: cartões bancários, insultos, o roubo de um celular em outra rua, que eles testemunham a dois quarteirões de distância. Jorn permanece à margem, uma mistura de distanciamento e curiosidade. Ele sente uma inquietação que o mantém acordado à noite: uma sede por mais — por atenção, por poder, pela sensação de que suas ações importam. Ele sentiu brevemente esse poder quando roubou ciclomotores, quando o motor gemeu sob ele e a velocidade lhe tirou o fôlego. Esse poder é doce e perigoso. Abre novos espaços, mas também o envia para lugares dos quais ele não sabe se algum dia conseguirá sair.
Ao término das aulas, a turma se divide em pequenos grupos. Alguns seguem para o centro da cidade, outros para seus apartamentos, trancando as portas como se fossem pequenas fortalezas.
Jorn, Rosita e Boris caminham juntos, os trajetos da escola pelas antigas ruas secundárias, que conhecem como a palma da mão. Acima deles, o céu adquire um tom vermelho acobreado; o gueto se prepara para a noite, que sempre tem suas próprias regras. A questão do que fazer paira no ar, e embora permaneça em silêncio, eles sabem que a noite trará decisões difíceis de reverter.
Eles chegam à estação de trem, e o coração do bairro pulsa em seu ritmo familiar. O sofá, a mesa, os grafites, tudo como sempre. Um espaço vazio; mas, de repente, o ar parece mais denso. É quase como se estivessem se aproximando de um limiar. Jorn fica parado no meio, olhando para seus amigos.
“Você sabe o que o Rico faz”, diz ele. “Ele causa problemas — para todos nós. Podemos não fazer nada ou podemos fazer alguma coisa.” Sua voz não é mais temerosa, apenas clara. Rosita cerra os punhos. Boris respira superficialmente. Eles ficam ali, três figuras, tecendo um plano cujos fios poderiam puxar para cantos mais sombrios. A ausência de Nala permanece um vazio doloroso no meio.
“Se Nala não vier”, murmura Boris, “deveríamos procurá-la”. Sua voz é baixa, mas há ponderação nela. Ninguém se opõe. Talvez seja o primeiro momento em que a preocupação se sobrepõe ao instinto de autopreservação. Jorn acena com a cabeça, mas seus pensamentos já tomaram outro rumo: a possibilidade de reagir, de atacar, de não apenas responder, mas agir.
A noite se aproxima, e com ela chegam as decisões sem volta. Os quatro ainda são crianças, mas dentro deles, a chama da vida adulta se acende, por mais tenaz e equivocada que seja. Eles formam uma unidade, forjando seu próprio plano, e no vazio deixado pela ausência de Nala, uma determinação toma forma — perigosa e luminosa ao mesmo tempo. A cidade respira, e eles respiram com ela, prontos para dar o próximo passo.
O entardecer se insinua sobre Colônia como cera espessa. As lâmpadas atrás das janelas projetam feixes de luz amarelados sobre as fachadas de concreto, e o céu está tão nublado que parece ter sido limpo com um pano. Jorn empurra a porta da frente, os passos da escada ecoam brevemente, e então tudo volta ao silêncio. No terceiro andar, o apartamento de sua mãe se estende como um livro aberto, suas páginas amolecidas pela chuva. Ele fecha a porta atrás de si, joga a mochila em um canto e ouve o tilintar suave de uma garrafa na cozinha.
Sua mãe está sentada à mesa da cozinha. A mesa está coberta de cinzas, um maço de cigarros está aberto, ao lado uma garrafa meio vazia que, na penumbra, parece um copo sem futuro. Seus olhos estão vidrados, suas pálpebras pesadas. O cigarro pende entre seus dedos como se fosse um canudo do qual ela deva extrair seu último suspiro. Ela não levanta o olhar quando ele entra. É um hábito, esse de não enxergar; algo que ele já experimentou tantas vezes que dói menos do que antes.
"Bem?", diz ela, sem elevar a voz. Sua voz tem a indiferença de uma máquina que continua funcionando, mesmo sem ninguém a controlando.
Jorn para no corredor, com as mãos enfiadas nos bolsos do suéter. Ele espera um instante, meio em antecipação, meio por ritual, antes de murmurar: "Vou para o meu quarto". É absurdo que ele diga isso, porque ela sabe; ela não sabe muita coisa, mas sabe que ele não ficará lá por muito tempo. Ela mal acena com a cabeça, mantendo-a baixa.
O apartamento cheira a cigarro velho, gordura e roupa suada. Pratos estão empilhados na cozinha; a geladeira está quase vazia, apenas um fio de molho flutuando em um recipiente de plástico, parecendo uma pequena ilha triste. Nenhum sorriso, nenhum olá, nada que indique: Você pertence a este lugar. É como se Jorn fosse um convidado que pudesse ir embora a qualquer momento. Ele fecha a porta do quarto quase delicadamente atrás de si, como se tentasse bloquear o barulho do apartamento.
Seu quarto é pequeno, um espaço entre as paredes que é seu único lar verdadeiro — e mesmo ali há poucos pertences. Uma cama velha, um abajur, um pôster na parede que evoca memórias de algo mais jovem: uma motocicleta, preta e brilhante, símbolo de algo mais veloz do que ele. Sobre a escrivaninha, alguns cadernos, uma camisa amassada e, num canto, uma pequena bolsa com coisas que ninguém liga: algumas chaves de fenda, uma chave de ignição sem fósforo, um relógio riscado. Jorn se joga na cama, estica as pernas e olha para o teto. O papel de parede está descascando em um ponto, revelando o gesso cinza por baixo — isso também é uma espécie de história: o cotidiano exposto.
Ele pensa naquela manhã, na escola, no diretor, na afronta que provocou ali — um triunfo elegante e vazio. Não é rebeldia; é um teste. Até onde ele pode ir sem que algo importante se quebre? E por baixo de tudo isso, algo mais pulsa: a ausência do pai, o silêncio, que já não é um eco, é um espaço. Seu pai mora em algum lugar distante, em outra cidade, um endereço sem nome, um homem que nunca chega, cuja voz se perde nos dias. Nenhum telefonema, nenhuma visita, apenas a marca de seu desaparecimento. Jorn sente isso como uma frieza que irradia do quadril, sempre presente, excessiva e, no entanto, vazia.
Ele estende a mão para uma garrafa meio enterrada debaixo da cama — uma pequena garrafa de bebida barata, uma lembrança das noites em que as ruas o repugnavam e o frio era insuportável. Ele toma um gole. O gosto é forte, quente e desconhecido, e por um instante algo se acende dentro dele: uma sensação de distância que já não é tão lancinante.
Ele sabe que não é uma cura, apenas um torpor que se instala como um cobertor sobre seus pensamentos.
A batida na porta é tão silenciosa quanto uma pergunta. Ele levanta a cabeça.
"Jorn?" A voz é de Nala. Soa tão clara como sempre, às vezes até firme demais, como se ela precisasse se agarrar a algo para que não se quebre. Ele abre a porta. Ela está parada no corredor, ainda de casaco, com os cabelos despenteados e os olhos atentos. Age como se estivesse apenas de passagem, como se estivesse "buscando-o", como costuma dizer. Mas há algo mais em seus olhos: essa hesitação, esse anseio de estar perto dele, como se essa proximidade fosse uma luz que a aquece.
“Oi”, ela diz, como se estivesse apenas dizendo olá, embora a palavra carregue um significado profundo. Ela sorri, um sorriso pequeno e torto. Suas mãos estão enfiadas nos bolsos do suéter. “Tudo bem?”
Jorn dá de ombros. "Claro." Ele diz isso com tanta frequência que já virou quase um hábito. Às vezes é mais fácil não se deixar levar. "Entre. Quer um café?"
Ela balança a cabeça. "Não. Eu só queria dar uma olhada." Ela entra, tira os sapatos e senta na beirada da cama. O cobertor farfalha enquanto ela se move. Para Nala, o quarto é um território familiar. Os quatro compartilharam coisas ali, segredos, noites. Ela conhece os cantos debaixo da cama onde as bolsas velhas ficam escondidas, conhece a mancha no colchão que nunca desaparece completamente. Ela se senta ali, e o ar entre eles se enche com o peso das palavras não ditas.
Jorn a observa. Seu rosto é suave, iluminado pela luz do corredor, seus olhos brilham, e ele sabe que ela está procurando — por algo que não é culpa dele: por apoio, por um sinal de que alguém ficará. Ele sente como um puxão no peito, uma pequena dor que geralmente disfarça com desdém. Mas hoje, o papel sarcástico permanece em seu bolso.
“Você não estava na escola hoje”, diz Jorn, soando um pouco mais acusatório do que pretendia. Mas Nala não responde — nenhuma explicação, nenhuma justificativa. Jorn decide deixar por isso mesmo.
"Você tem viajado muito?", pergunta Nala depois de um tempo, como se quisesse contextualizar a noite.
“Aqui e ali”, responde ele, laconicamente. Ele pousa a garrafa, girando-a entre as mãos. Seus dedos estão imóveis, os movimentos mecânicos. “Estávamos na estação de trem.” Ele diz isso como se não fosse nada demais. Para ele, é o centro, o coração, o lugar onde eles se mantêm unidos, onde sua presença tem peso — um contraste com o que é o lar.
Nala olha para a cama, com os dedos entrelaçados. "Rosita disse que deveríamos nos encontrar esta noite. Ela disse que precisamos ver algo, decidir algo." Seu olhar encontra o dele. "Boris... está quieto. Ele está preocupado." Sua voz baixa, tornando-se mais fraca, como se carregasse algo que não quer dizer.
"Rico", diz Jorn simplesmente. A palavra é como uma sombra, breve e sem qualquer ruído de fundo. "Ele pressiona." Aquele nome de novo — uma promessa de problemas. Jorn sente a tensão no corpo como uma corrente elétrica pulsando em seus ombros. Rico é o tipo de pessoa que corta caminhos, impõe limites e usa ameaças. Para garotos como Jorn, ele é um parâmetro: ceder ou revidar.
Nala encolhe as pernas, abraçando-as. "Estou com medo", diz ela tão baixinho que as palavras mal têm tempo de sair do quarto. "Não dele... mas de você..." Ela hesita, procurando o tom certo. "De que você vai mudar. De que as coisas não vão continuar como eram."
Jorn ri, mas é uma risada curta e rouca. "Estou sempre mudando", diz ele. "Isso é tão ruim assim?" Ele diz isso meio brincando, meio falando sério. Ele sabe o que ela quer dizer: que seu sorriso está ficando mais rígido, que ele está tomando decisões com consequências muito mais profundas do que simplesmente matar aula. Ele pensa nas noites, no gosto do motor sob ele, na adrenalina de ser diferente da maioria das pessoas aqui. Ele pensa no vazio em casa e em como um roubo pode facilmente preencher seu coração por uma noite.
Nala olha para ele, e nesse olhar há um anseio que consiste não apenas em amor, mas também em medo. Ela quer se agarrar a ele, quer lhe dar algo que ele não tenha a perder. "Não me prometa nada que você não possa cumprir", diz ela. "Apenas prometa que não vai se esquecer de mim se..." Ela não consegue terminar a frase. É a peculiaridade das crianças que sabem demais: elas querem prometer o que os adultos não podem cumprir.
"Não vou esquecer", murmura Jorn. Ele sabe como as palavras soam vazias quando não se pode demonstrá-las. Não quer prometer, porque promessas em sua vida são facilmente quebradas. Mas, ao olhá-la, por um instante sente o desejo de fazê-lo, de dizer não às coisas que o afastam. Pressente a possibilidade de uma decisão não ditada pelas ruas. É um pensamento caloroso, breve e talvez ingênuo, mas está lá.
Eles ficam sentados em silêncio por um tempo. O relógio faz tique-taque, um clique seco que divide o cômodo em pequenos pedaços. Lá fora, uma música latino-americana abafada vem de outro apartamento, ao mesmo tempo reconfortante e deslocada, como se histórias de outros lugares estivessem se infiltrando pelas paredes.
